26 de maio de 2007

Um coroinha

Interrogado sobre suas afinidades literárias, Severo Sarduy (1937-1993) respondeu: “Eu sou um monge dessa religião chamada Lezama”.

Eu diria que sou, sem dúvida alguma, um coroinha indomado dessa seita laica chamada Sarduy.

Um dia desses, madrugada adentro, improvisei uma tradução que considero “correta” (ou “careta”?) de um de seus belos sonetos. Sem me ater à metrificação original, mas me pautando de perto pela imagem delineada no poema, cheguei a este resultado, nada definitivo, é claro, como verão a seguir:



LÚBRICO E LUZENTE, O ÊMBOLO

Lúbrico e luzente, o êmbolo
invade jubiloso a ranhura
e derrama sua branca queimadura
mais abrasante quanto mais lento.

Um cúmplice fugaz e disfarçado
saliva e experimenta a abertura
dilatada no volume e que sutura
sua própria lava. E no ovalado

mercúrio tangencial sobre o tapete
(a torre, lambuzada penetrando,
jorrando mel, saindo, entrando)

decifra o ideograma da sombra, cede:
o pensamento é ilusão: abrandando
vem aos poucos o inominável ente.


EL ÉMBOLO BRILLANTE Y ENGRASADO...

El émbolo brillante y engrasado
embiste jubiloso la ranura
y derrama su blanca quemadura
más abrasante cuanto más pausado.

Un testigo fugaz y disfrazado
ensaliva y escruta la abertura
que el volumen dilata y que sutura
su propia lava. Y en el ovalado

mercurio tangencial sobre la alfombra
(la torre, embadurnada penetrando,
chorreando de su miel, saliendo, entrando)

descifra el ideograma de la sombra:
el pensamiento es ilusión: templando
viene despacio la que no se nombra.



Severo Sarduy

Tradução de Jean Cristtus Portela

25 de maio de 2007

O jovem e seu preceptor

Este post é um "clin d'œil" ao poeta árabe de origem persa Abu-Nuwas (nascido em Ahwaz, morto em 810), o "homem de cabelos 'pendentes'", que fez uma ponta nas Mil e uma noites.

O conto a seguir, que tem ao menos mil anos, é uma adaptação de uma das histórias compiladas e traduzidas do árabe para o inglês por Sir Richard Burton.


O JOVEM E SEU PRECEPTOR

Conta a lenda que o vizir Badr al-Din, governante do Iêmen, tinha um jovem irmão cuja beleza era tão espantosa que, quando ele passava, homens e mulheres, querendo banhar seus olhos por um instante no charme que dele emanava, viravam-se e detinham-se para admirá-lo. O vizir, que temia que algo de inoportuno pudesse acontecer a tão adorável ser, mantinha-o longe dos olhares dos homens, impedindo-o de ter amigos da mesma idade. Não estando disposto a enviá-lo para a Escola Corânica como os demais meninos, onde ele não poderia ser suficientemente vigiado, pediu a um venerável e piedoso ancião, conhecido por sua conduta absolutamente casta, que assumisse o papel de seu preceptor, instalando-o em um quarto vizinho ao do pupilo.

Todos os dias, o respeitável ancião passava horas e mais horas com seu estudante. Não tardou para que a beleza e a sedução do jovem surtissem seu efeito costumeiro. Após algumas semanas, o velho homem foi acometido de uma paixão tão violenta pelo menino, que ele podia ouvir todos os pássaros de sua juventude cantando novamente em seu íntimo, e esse canto nele despertou algo que há muito tempo estava adormecido. Não sabendo como dominar seus sentimentos, o velho homem declarou-se ao jovem, dizendo que não poderia viver muito mais tempo longe dele.

“Ai de mim”, disse o jovem, profundamente tocado pelo sentimento de seu professor, “eu nada posso fazer, cada segundo de meu tempo é vigiado por meu irmão”. O velho homem suspirou e disse, “Como eu almejo passar uma noite sozinho ao teu lado!”. “Falas muito bem”, retorquiu o outro, “mas se meus dias são tão bem guardados, como imaginas serem minhas noites?”. “Eu bem sei”, disse o ancião, “mas minha varanda é vizinha a tua, enquanto teu irmão dorme, seria fácil passares pela janela de teu quarto para a varanda; então eu te ajudaria a escalar o muro para que entrasses. Lá estando, ninguém poderia nos ver”.

Tal idéia agradou ao jovem. Nessa mesma noite, ele fingiu estar dormindo, e, tão logo o vizir adormeceu, saltou a janela de seu quarto e ganhou a varanda, onde o velho homem esperava-o. O sábio pegou-o pela mão e, passando-o por cima do muro, conseguiu trazê-lo para dentro de sua própria varanda, onde bandejas de frutas e taças de vinhos transbordantes os aguardavam. Eles se sentaram em um tapete branco e, banhados pelo luar, começaram a beber e a cantar sob a inspiração da noite clara e da suave luz das estrelas que iluminavam o seu êxtase. Enquanto as horas assim maravilhosamente passavam, o vizir Badr al-Din despertou repentinamente e, como que tomado de um pressentimento, teve a idéia de ir ao quarto de seu jovem irmão, onde, atônito, não conseguiu encontrá-lo. Depois de procurar o jovem por todo o palácio, ele decidiu sair para a varanda e, aproximando-se do muro, viu seu irmão e o velho homem sentados lado a lado, erguendo ambos suas taças de vinho em um brinde extasiado.

Tamanha foi a sorte que tiveram: o velho sábio, percebendo a presença do vizir, agiu genialmente rápido. Ele interrompeu a canção que cantava e improvisou tão habilmente uma outra estrofe que a seu ritmo nada faltou. Tendo cantado:

Oh amado, tua boca molhou
Esta taça que agora é minha,
O ruge de tua face tornou
A cor do vinho esmaecida!

Na seqüência, improvisou:

Teu irmão nobre e respeitável,
Reprovar-me-ia duramente
Se eu chamasse a ti “adorável”,
Ser belo, sereno e excelente!

Ao ouvir tão delicada alusão, o vizir Badr al-Din, sendo homem discreto e galante, e vendo igualmente que nada de impróprio acontecia entre os dois, retirou-se, dizendo a si mesmo: “Assim como Alá vive, que eu não perturbe tal confraternização”. E a dupla pôde continuar a festejar em perfeita harmonia.

Tradução de J. C. P.

24 de maio de 2007

Aporia da Voz II (Uma resposta)

Caro E., sua interrogação sobre o tema que tentei abordar com minha descrição “fenomenológica” (para manter suas aspas) da voz é totalmente legítima.

Podemos considerar essa questão segundo duas hipóteses ou atitudes fundamentais: 1) O CANTOR emite a voz; 2) O voz é emitida NO cantor. Na primeira hipótese, o cantor é senhor de sua produção, "consciente” que é da inteligência que a elabora e do aparelho físico que a realiza. Na segunda, o cantor é "somente" o lugar, o receptáculo, o continente da produção, que lhe é exterior (exterior de seu interior), alheia (alhures), e ele ignora ou prefere ignorar o que se passa NELE.

Lembro-me, agora, vagamente, de Bola de Nieve (“Yo soy la canción que canto”) ou, ainda, de Maria Bethânia (“Não sou eu, é a Voz, é Deus...”), que encarnam, respectivamente, os dois modelos que descrevi acima.

Seja oriunda a voz do interior ou do exterior, a questão que você formula permanece incômoda: como mensurar e classificar os sentimentos do cantor em relação a sua própria voz?

(Se pensarmos que a voz, antes de ser material, é um “sentimento”, somos forçados a admitir que a fruição do cantor de sua própria voz é “metassensível”, é um sentimento ao quadrado. O que leva a crer que o sentimento do cantor, na medida em que usa seu canto como um plano de linguagem no qual ele elabora uma outra linguagem, é bem diferente daquele do ouvinte. O cantor sente e canta e, quando se ouve, sente algo sobre aquilo que sentiu no que cantou: é isso que classifiquei precariamente como fruição “metassensível”. De uma certa maneira, o pensador mais exigente pode alegar que todo o sentimento é sentimento de sentimento (o problema do valor do valor). Bom, nesse caso, eu diria que o “metassentir” do cantor é mais intenso que aquele do ouvinte.)

*

É nesse momento que penso, por exemplo, na última Billie Holiday, que, ainda SENDO a voz, não era, entretanto, mais habitada por ela. Embora a qualidade material da voz não pudesse mais se manifestar em Lady Day, quando ela abria a boca, havia ALGO que se desprendia de seu ser. Eu diria que esse algo é a memória da VOZ, a sua existência abstrata, esquemática. Não é à toa que, ao escutar Billie Holiday já decadente retomando “The end of a love affair” inúmeras vezes antes de atingir insatisfatoriamente a altura pretendida, não sabemos por qual voz decidir: a sensível ou a inteligível.


*

O cantor que houve a própria voz como se fosse de outro cantor encontra um correlato em Pessoa:

Brincava a criança
Com um carro de bois.
Sentiu-se brincado
E disse, eu sou dois !

Há um brincar
E há outro a saber,
Um vê-me a brincar
E outro vê-me a ver.

Acho que nenhum cantor está livre de ser dois, seja qual for a concepção que tenha de sua arte. O que me parece certo, é que, quando o artista SE emociona, ele o faz precisamente porque – consciente em menor ou maior grau de sua duplicidade perigosamente ambígua (o corpo e a voz, a voz DE e a voz NO etc) – ele se percebe UM.

Mas é claro que tudo o que eu disse não passa de especulação...

Grande abraço,

J.

23 de maio de 2007

A música magistrAL

Em 9 de maio, o elétrico e imaginativo Paulo de Toledo (P. ou P. de T, eu diria normalmente) enviou-me uma mensagem da qual, devido ao descaminho próprio a quem tem desnecessariamente mais de uma conta de e-mail, fui conhecer a existência apenas ontem.

Nela, o gentil amigo apresentou-me uma versão sua de “To a giraffe”, de Marianne Moore, cuja tradução fora postada por mim em 8 de maio.

Deliciado com a qualidade da resposta-tradução de P. à minha versão do poema de Marianne, resolvi postá-lo aqui, como justa homenagem à bem-sucedida empresa a qual se lançou o poeta santista: devolver ao poema originAL sua música magistrAL.

De poema em poema, de tradução em tradução, o Texto expande-se e reforma-se: eis o brinquedo eleito das criaturas críticas.



PARA UMA GIRAFA

Se é inadimissível, na verdade, fatal
ser pessoal e desejável

ser literal — ou mesmo prejudicial
se o olho não é inocente — quer dizer que

pode-se viver só com as folhinhas al-
cançáveis apenas ao bicho mais alto? —

do qual a girafa é o perfeito exemplo —
o animal infreqüentável.

Quando atormentada pelas coisas d’alma,
uma criatura pode ser intragável

isso poderia ser irresistível;
para ser precisa, excepcional

já que menos freqüentável
que certo emocionalmente inapto animal.

Afinal
o consolo da metafísica ocidental
pode ser profundo. A existência, em Homero,

é falha; a transcendência, condicional;
“o caminho do pecado à redenção: sem final.”


Marianne Moore (De “Tell me, tell me”, 1966)
Tradução de Paulo de Toledo

22 de maio de 2007

Faussement prometteur

Desde a primeira visita, o blog de Lusina já me havia fisgado. Tanto seu nome (bela e elegantemente programático: Lusopholie) quanto o texto que lhe introduz (“Pourquoi Lusopholie?") já são suficientes para que o leitor certifique-se da generosidade e da nobreza de seu trabalho: apresentar ao público de língua francesa a prosa, a poesia, enfim, as artes do mundo lusófono.

Apresento abaixo a excelente tradução que a talentosa Lusina fez de um de meus poemas, “Falsamente promissor”:


FAUSSEMENT PROMETTEUR

Une pensée qui se détache
pas un aveu - elle m'est venue solennellement.
Ni un don méritant qu'on s'y attache
ni même un jeu réclamant la réciprocité.

Une serviette partagée
pas non plus, même humide,
une dévotion manifeste ou une aveugle estime.

Bien qu'il y ait du détachement
Et un certain mérite à jeter sur soi
un tissu moelleux et tiède qui à l'instant
a fait le tour de sa chère poitrine, et couché
tous ses poils du même côté :

Motif faussement prometteur,
l'or d'un autre, la serviette-toison.


Mars 2007


Jean Cristtus Portela
Traduction de M. Lusina

*

ARS POETICA (para C. L.)


Lusina
Lume
Lima
Lasca
Límpida

21 de maio de 2007

Um muro, um fosso

Partindo do ponto de vista daquele que escreve, a descontinuidade que existe entre uma obra e outra – entre um poema e outro, para ser mais preciso – é algo que me fascina. Quando um poema acaba? Ou, ainda, quando um poema deixa de ser o mesmo poema e torna-se outro.

Fico pensando se não seria mais adequado tratar a descontinuidade de um poema a outro em termos de uma continuidade original, constitutiva.

O poema avança e suas imagens se desdobram... Então, literalmente, há a parada (temporal) e o fechamento (espacial), para empregar os termos caros a C. Zilberberg. A imagem cessa.

*

Partindo de uma questão extremamente prosaica, o grande Lezama Lima conseguiu esboçar uma proto-poética que ilustra bem o problema da parada:


"12. Como o senhor começou a escrever poesia?

Comecei a escrever poesia por volta dos meus 15 ou 16 anos. A Morte de Narciso, eu o escrevi aos 22 anos, foi publicado anos depois, mas é um poema que corresponde a minha adolescência. Eu sentia em mim, desde menino, algo muito peculiar que talvez chamaria poesia. Escutava as histórias que contavam minha avó, meus tios, minha mãe, e depois as entrelaçava com novos episódios meus. Assim, eu podia viver no passado, aproximá-lo do presente que nos rodeava. O mesmo me acontecia com as palavras, eu acabava por relacioná-las com fatos, acontecimentos pessoais ou históricos. Ouvia uma palavra, imediatamente me vinha sua imitação labial, depois, o ritmo respirante, o gesto do indicador ao traçar o contorno da palavra, a brisa que fazia cavalgar a sílaba, as cores que nomeavam a manhã ou se eternizavam na noite. Sempre que me vinha essa sucessão na infinitude, sabia que estava dentro da poesia. Mas num instante surge o muro, a ruptura das sucessões, é uma trégua, um aviso para o começo de outro poema."


(“Un cuestionario para José Lezama Lima”, de Salvador Bueno. In: Paradiso: edición crítica. Cintio Vitier (coordinador). 2. ed. Madrid; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX, 1996. p. 730.)

*

Terminado um poema, estamos prontos – embora jamais certos de realmente conseguir – a passar a um outro. É a passagem da parada à parada da parada, à suspensão da suspensão, que resgata a continuidade. No caso da parada (“ruptura das sucessões”), para Lezama, é de um muro que se trata, de um limite, de uma força resistente.

Imagino que, no caso da parada da parada, somos projetados em um precipício, um abismo, um fosso: diferentes formas de nomear a vertigem.

20 de maio de 2007

Japonaiseries

Quando comecei, entre 99 e 2000, a interessar-me pela poesia japonesa, o que nela me chamou mais a atenção foi a evolução de sua metrificação e sua relação com a oralidade. O haikai (haiku), como se sabe, é a "cabeça", a primeira estrofe (hokku) de um longo poema popular encadeado (haikai-no-renga) no qual os motivos sazonais (kigo) são retomados em espirais vertiginosas, multiplicados em progressão geométrica, alcançando variações surpreendentemente sofisticadas. Essa forma encadeada (tributária do waka ou tanka), que deu origem ao concentrado e mínimo haikai, era, por vezes, extensa, prolixa e, portanto, repetitiva (o que no zen-budismo não é nenhum defeito). Não raro, poetas entravam em "transe", em furor poético, de tanto improvisar poemas incansavelmente em torno de um braseiro.

É curioso pensar que o haikai, este mínimo de nada, este capricho de contenção e concentração, tenha se originado como sedimentação, como decantação, da caudalosa poesia encadeada.

Para entender melhor como se dava esse jorro rítmico-temático que era o poema encadeado - talvez uma das únicas formas poéticas japonesas em que o conceito de eloqüência tem algum sentido -, decidi praticá-lo.

O magro resultado desse exercício é a série de poemas que segue, que reuni sob o título "Japonaiseries" (como as "japoneries" de Pierre Loti) ao final de meu Póstumas (Poemas - 1998-2000).



*


ARENGAS



I


a rã: cigarra de couro
radia na manhã -
caminho do aldeão.

fresta galho de sol
ergue a poeira morno.



um passo mais largo
resto de orvalho -
bolsos pesados.

surpresa: são pedras
as pontas de meus dedos.



rebelde a gota
só: moída pela chuva
fere meu degredo.

um canto em brasa -
cigarro da cigarra.





II



de vibrar serpenteia:
língua do sapo
na libélula.

raiz coberta de lama
ceia medular a seiva.



antenas clementes -
som de insetos -
lume delator.

um pé só calcanhar
atrás de meus netos.



céu varado -
ninho de cascavéis
serve o chão.

fresco o abrigo
sumo de guizos.

19 de maio de 2007

Issa revisitado

Organizando umas pastas antigas no micro, reencontrei Kobayashi Issa (1763-1827) – o que me encheu de ternura e saudade. Relendo e cotejando as traduções que fiz à época, é claro que me arrependi de certas coisas (como trocar “mochi” por "fumo", por exemplo), mas reconheci no conjunto um certo frescor, prova de que Issa sobrevive a toda sorte de adversidades.



esse nosso mundo –
do capim dali,
sai nosso fumo.

ora ga yo ya/ sokora no kusa mo/ mochi ni naru.



lua cheia –
aponta no oeste
o templo de Zenko.

meigetsu ya/ nishi ni mukaeba/ zenkōji.



o velho cão –
imagina ouvir
a moda das minhocas.

furu inu ya/ mimizu no uta ni/ kanji-gao.



mosca do chapéu,
hoje você já é
gente de Edo!

kasa no hae/ mo kyō kara wa/ edo mono zo.



pérolas de orvalho
em cada uma
vejo minha aldeia.

tsuyu no tama/ hitotsu hitotsu ni/ furusato ari.



em minha casa
os vagalumes se dão
com os ratos.

waga yado wa/ nezumi to naka no/ yoi hotaru.




cantam os insetos
e saltam sós
como nós.

mushi naku ya/ tobu ya tenden/ ware-ware ni.



montanhas da aldeia –
a lua cheia
até na sopa.

yamazato wa/ shiru no naka made/ meigetsu zo.



chuva de primavera –
seguindo a criança
o gato dança.

harusame ya/ neko ni odori wo/ oshieru ko.



lua cheia –
hoje até você
ocupada?

meigetsu ya/ kyō wa anata mo/ isogashiki.



uma lagarta caída
no inferno
das formigas.

ōkemushi/ ari no jigoku ni/ ochi ni keri.



ventos de outono
inquietam
o coração de Issa.

aki no kaze/ issa kokoro ni/ omou yō.



Tradução de Jean Cristtus Portela
Revisão de Chikako Tange, Sandra Shirahata e Tadashi Nakao



Fonte: PORTELA, Jean Cristtus. Issíada: Obra & desdobra de Kobayashi Issa. 2001. 60 f. Monografia (Trabalho de conclusão de curso) – Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Universidade Estadual Paulista, Bauru.

18 de maio de 2007

Balzac dos insetos

O entomologista francês Jean-Henri Fabre (1823-1915), autor de uma verdadeira Comédia Humana sobre os insetos, é praticamente desconhecido entre nós. A obra científica de Fabre já foi editada em uma dúzia de línguas, exceto em português. Sua poesia permanece praticamente inédita, sendo quase toda ela escrita em provençal (não, ele não é nenhum Arnaut Daniel).

Conheci Fabre por acaso, ao adquirir um volume de suas Memórias entomológicas em um sebo qualquer. Iniciada a leitura, não demorei muito a perceber que estava diante de um cronista de um fino senso de observação e de uma percepção insuportavelmente lúcida tanto do mundo dos insetos quando do mundo dos humanos. Não foi à toa que Jean-Henri Fabre teve, entre seus correspondentes e admiradores, Charles Darwin e John Stuart Mill, entre outros.

A humanização das personagens e pequenos dramas do mundo animal é um tema rico (vide Esopo, La Fontaine, George Orwell e... Walt Disney!). Basta assistir a cinco minutos das redes de televisão a cabo que exploram esse filão para ver que a picada inaugurada por Fabre vem sendo explorada incansavelmente – e com bem menos estilo.

Abaixo, minha tradução de uma passagem de “O louva-a-deus”, texto publicado originalmente em 1897, no quinto volume das Memórias entomológicas, e reeditado em 1949, na coletânea Cenas da vida dos insetos:

“[...] Devido a uma exceção da qual não se poderia suspeitar na classe herbívora dos Ortópteros, o louva-a-deus alimenta-se exclusivamente de presas vivas. Ele é o tigre das pacíficas populações entomológicas, o ogro à espreita que cobra seu tributo em carne fresca”.

“Exceto por seu instrumento letal, o louva-a-deus em nada inspira apreensão. Ele não carece nem mesmo de graça, com sua figura esguia, seu elegante corpete, sua coloração de um verde tenro, suas longas asas de gaze. Nada de mandíbulas ferozes, abertas como tesouras. Ao contrário, um focinho pontudo que parece ser feito para bicar. Com a ajuda de um pescoço flexível, bem separado do tórax, a cabeça pode girar, virar para a direita e para a esquerda, inclinar-se, erguer-se. Solitário entre os insetos, o louva-a-deus dirige seu olhar, inspeciona, examina. Ele tem quase uma fisionomia”.

17 de maio de 2007

Variações francesas (Qu’est-ce qu’il est chauvin!)

Para S. M., que ficaria puta lendo isso, mas que sabe que eu a (os) amo.


No Brasil - et un peu partout - fala-se muito do mau-humor do francês e de sua polidez, por vezes, ofensiva. De fato, para as almas delicadas e prestativas que são as nossas, curtidas no caldo colonial e nos seios fartos de povos despretensiosos e receptivos, o espírito francês não é dos mais acolhedores.

Sei que é bobagem endossar preconceitos culturais, mas, por vezes, sinto que existe algo na alma francesa que eu definiria mais ou menos assim: é como se os franceses não devessem nada a ninguém, tivessem sempre medo de perderem o pouco que têm e vissem os outros, necessariamente, quer como a continuidade de sua glória passada ou futura, quer como a certeza de seu ocaso. Embora “latinos”, talvez devido a sua estreita relação com a sensibilidade dos povos do Norte, os franceses, sobretudo do Limousin para cima, foram certamente influenciados pela disposição de espírito dos ingleses, holandeses e alemães, que, como sabemos, não criaram o Tango, nem o Samba e nem a Macarena.

Alguns acusarão, com razão, a minha injustiça: ele tenta classificar a sensibilidade das culturas através do grau de elasticidade e relaxamento dos quadris!

Não, as coisas não são tão simples. Na verdade, faço referência ao derramamento da tristeza, da nostalgia, à amplificação do estado amoroso, seja idealizado ou simples “bota pra foder”, que tão bem definem o Sul. Não se pode negar que os povos do Sul têm um acesso direto a seu corpo e que isso produziu um saber outro no âmbito da cultura. Eu chamaria esse saber de “sabedoria do vivente” e o oporia à “sabedoria do sobrevivente”. Bom, paro por aqui a “avaliação de conjunto” que ensaiei, sem pretensão alguma de aprofundar este olhar sociológico zarolho sobre um tema do qual já se disse muito desde que os gringos aprenderam a boiar e a remar longas distâncias.

*

Sem sacanagem alguma, se eu não soubesse que Billie Holiday estava se referindo na frase abaixo a uma clínica de desintoxicação, eu pensaria que ela estava fazendo alusão direta à vida universitária francesa ou, mais particularmente, a uma “equipe de pesquisa”:

“Se soubesse qual era o tipo de ‘tratamento’ que eles iriam me dar em Alderson, teria me tratado sozinha – era só me trancar num quarto e jogar a chave fora”.

(“Lady sings the blues: uma autobiografia”, de Billie Holiday, com a colaboração de William Dufty. Tradução de Luiz Antônio Sampaio Chagas. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 139)

*

Para meu completo horror, já ouvi um francês dizendo que os brasileiros, "bajuladores e interesseiros", pensam que eles são “vacas leiteiras”. Não é que eu vá cometer a injustiça de julgar todos os franceses por esse comentário, mas, para dizer a verdade, isso é bem sintomático da parte de alguns franceses: achar que todo mundo quer se esbaldar no seu leite e tomar providências expressas para que de seus mirrados úberes não tombe sequer uma gotinha peregrina.
*
A imagem daquele que mama gaiatamente à saciedade onde pode, quando discutida à luz do imaginário que (ainda) sustentamos a respeito dos franceses, é paradoxal e deliciosamente sacana e infantil: eles falam francês e nós fazemos "biquinho". E essa imagem do "biquinho", para mim, é o correlato preciso de Grande Otelo virado Macunaíma, o bebê grande e preguiçoso.

16 de maio de 2007

Um texto de Naje

Abaixo, em tradução apressada, o fruto de uma aquisição recente: a reedição de uma obra de P. C. Naje (1917-1992). Embora um pouco carregado, eis um estilo pelo qual não deixo de manifestar certa atração:


“Tidos indevidamente por misantropos, os eremitas, os solitários intransigentes, os aficionados do ostracismo e do recolhimento, tiveram sua misantropia passiva e, em muitos casos, benigna, condenada por todos os chamados ‘analistas comportamentais’. É tempo de reparar o lamentável erro que consistiu em excluir do campo de observação das ciências 'potencialmente' comportamentais – da Antropologia Social à Sociologia do indivíduo e à Psicologia – esta classe de misantropos atuantes e nocivos, que é a classe das pessoas sociáveis. Até o momento, os brasileiros de S. B. de Hollanda [sic] encontram-se praticamente solitários na galeria dos homens obscuramente cordiais”.

Introdução de “La naissance de l'Antisocial” (1991), de P. C. Naje.

15 de maio de 2007

Perec en deux temps

Le roman "Les Revenentes" (1972) - oui, ça s’écrit comme ça, histoire de faire chier les puristes - est parmi les lipogrammes les plus connus de Perec. En voilà mon passage préféré:

« C’est le réel. Le spleen me prend et me berce. Je rêve de mes terres d’Ellesmere. Ses mers et ses grèves, et les pétrels, et les tempêtes. Se déprendre ! Être en mes terres ! Et cette netteté céleste que l’éther reflète, et le grès des crêtes et le blé des prés ensemencés dès septembre ! Et les terres émergées des Égéens et les temples d’Éphèse ! Thélème clémente : reprendre Sceve et Stern, et Mersenne, et Wegener!… »
(G. PEREC, Romans et Récits, Le Livre de Poche, Paris, 2002, p. 578)
* * *

De fait, présenter une traduction du fragment ci-dessus, ce n'est pas une mince affaire. Faute de le faire, je vous présente ici un petit extrait d'un texte que j'ai fait sous l'influence de Perec. J'ai choisi le lipogramme en "a", qui est sans nul doute la contrainte correspondant en portugais au choix de la voyelle "e" en français.

NADA PASSA (fragment)
“Nada passa...”, ralha a canalha amarga! Cada palavra, tacanha arma: bala alada, adaga clara, tara casta. Tamanha a arca: palha alva, cascas da Carta Magna, lama da vaga da mata, carcaças nacaradas, a chama da sarna! Ah, a canalha traz para a trama a nata da safra: “Nada passa”.
.
.
.
(Un petit clin d'œil à mes amis lusophones: eis meu primeiro e derradeiro lipograma em "a". O trecho não é uma tradução, mas é invejado de Perec, é claro).

14 de maio de 2007

Aporia da Voz

E. não suporta a voz de M., de quem tampouco sente completa aversão. Simplesmente ela não gosta de ouvir essa voz e não consegue conviver muito tempo com M., que, é claro, ignora esse "segredo".

Isso me faz pensar sempre no quanto a voz é importante no que chamamos filosófica, semiótica e vulgarmente “Presença”. E também no quanto o som é palpável, concreto: ele se manifesta por e em nós. Até aí nada demais: só exponho empiricamente o que já muitos ensaístas, poetas e cientistas constataram.

O que me preocupa, afinal, é a primazia do corpo na concepção do Som. E, mais importante, a primazia do Som sobre o corpo, em detrimento do pensamento, da Idéia. Um som pode estourar uma membrana, um copo, fazer doer um dente. Nesses casos, vê-se que é bem do corpo, da carne da nossa existência, de que se trata.

A cantora francesa Barbara teoriza a sua experiência (e que experiência e sensibilidade!) em uma passagem de sua autobiografia. Para ela, a voz é a sintonia fina da Presença humana e sua simétrica representação:

“A voz é um barômetro de uma extrema exatidão. Quantas vezes, diante de uma mudança até mesmo ínfima e quase imperceptível de seus timbres de voz, não pude notar o estado físico ou moral deste ou daquele amigo! Todos nós conhecemos timbres de voz que nos são insuportáveis, às vezes de forma até repulsiva. Conhecemos, do mesmo modo, o poder de certos agitadores ou oradores políticos de sinistra memória, de quem guardamos os sotaques arquivados em nossos tímpanos.” (Bárbara, Il était un piano noir… : mémoires interrompus, Fayard, 1998.)
*

Sim, a voz define o fulgor da Presença. Por outro lado, a inteligência humana é capaz de emular, reproduzir, qualquer voz: a voz não é somente arte do corpo, mas também da “memória”, que lhe fornece a matriz esquemática e abstrata, o padrão intensivo de sua extensão.

A partir dessa constatação, estamos prontos a ganhar o domínio de uma nova aporia: a Memória...

13 de maio de 2007

A PARTE DAS MIGALHAS

Sei... Depois de mim, as migalhas!
Criada de Madame de Pompadour, Séc. XVIII



Tão sorrateiramente quanto a ocasião me permite, sou daqueles que batem a toalha para fora da sacada.

Antes, é claro, verifico com displicência culposa se na toalha há outra coisa que migalhas. Um guardanapo, um isqueiro, uma caneta? Perda lastimável. O saleiro, um talher? Assassínio!

Nos segundos que seguem ao arrastão que faz da toalha uma trouxa, ainda tento, lançando mão de minha habilidade de prestidigitador incrédulo, nela sondar qualquer coisa mais saliente que uma migalha. Não raro, aperto com zelo a toalha contra o peito (talvez seja sua última viagem), tateando a trouxa indecente e transbordante. Se a trouxa compacta-se sem oferecer resistência, a sorte está lançada.

Se já é noite, dependendo da intensidade da luz, posso ver dezenas ou centenas de migalhas de vários tamanhos em seu último salto. Chacoalho a toalha duas ou três vezes, a última deve produzir um som grave e abrupto de pano de toureiro, garantia de que a violência do gesto foi suficiente para desprender mesmo as migalhas microscópicas ou (completo horror!) as migalhas úmidas. Caso a operação obtenha sucesso, mais do que migalhas, nesse vôo livre embarcarão também alguns fiapos.

Mesmo sabendo que, muito provavelmente, as migalhas de minha mesa acharão morada no chão da sacada de um ou vários de meus remotos e anônimos vizinhos verticais, continuo impune e friamente a bater toalhas.

Confesso: após o ato final, sempre há um momento, na hora em que deito a toalha isenta e esvoaçante sobre a mesa – que deverá acomodar-se em um só lance, comprovando minha destreza para certas manobras cotidianas cuja dificuldade é por muitos ignorada –, em que uma chuva de migalhas invade a minha imaginação.

Nessa visão, vindas de cima, dos ares, as migalhas jorram de um coro de dez toalhas implacavelmente orquestradas. Segundo o vento e a força com a qual foram lançadas, algumas delas terminarão, é certo, no chão de minha sacada.

Bater toalhas. Comunhão e generosidade. Amoralidade e resignação.

11 de maio de 2007

Contra o fetiche da poesia

Contra o fetiche da poesia, Pattje-Russerl, poeta apátrida exilado nos EUA, contemporâneo de Joseph Brodsky, lança afiadas farpas*. Eis um trecho de uma entrevista sua, traduzida no calor da polêmica:

"Embora tenha suas raízes na palavra cantada, 'declamada', a poesia é uma forma jovem, e isso em vários sentidos. Atualmente, a forma poética é para mim uma forma arrogante demais. A poesia, ou se você preferir, o poema, não tem mais na minha obra a mesma importância. Com o passar do tempo, cheguei à conclusão de que eu deveria ter vinte anos menos ou, no mínimo, ser mais otimista ou pretensioso para continuar acreditando que uma massa sonora qualquer, que poucas linhas distribuídas de uma forma improvável, devem, a priori, ser reverentemente chamadas ‘poesia’, ‘poema’. O drama essencial da linguagem ou, se você preferir, o conteúdo último da nossa maneira de ser no mundo, o significado que mais tememos ou prezamos, não foi e não está fixado por gênero literário algum”.

Antoïc Pattje-Russerl (1925-1986)
"A interview about the foundations of poetry" (1983)
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*Esse pequeno fragmento, quando publicado por mim em Tal a Fuga I, foi tido por E. como excessivamente pessimista e "absolutamente escandaloso" .

10 de maio de 2007

Pourrrrr de ne pas vivrrrre seul

Quem, de fato, é fã de Dalida é M., que sempre me apresenta uma pequena jóia de sotaque e ternura de sua diva.

No final de 2005, vivendo meus primeiros dias entre os gauleses, senti-me só como há muito não me encontrava. Marinheiro de muitas viagens solitárias – solitárias, sim, ainda que se lançassem homens ao mar, tamanha a densidade demográfica da embarcação – encontrei-me mais só do que eu mesmo poderia supor: todos os brinquedos para mim tornaram-se velhos e nem mesmo eu me era um brinquedo.

Foi nesse humor impuro que traduzi a canção “Pour ne pas vivre seul”, interpretada por Dalida em 1972.

Por incrível que pareça, minha tradução foi feita para ser cantada ou, ao menos, para que se tente fazê-lo. Outro dia sonhei que era Bethânia que a cantava em português. Pensando bem, a figura era gorda demais para ser Bethânia. Não, não era Bethânia.

Como sempre, pesei a “mão que traduz o verso” aqui e ali (“penduram-se em vitrais” para “s’accrochent à une étoile” ou a alternância entre “só” e “sós”, por exemplo), mas o leitor há certamente de me perdoar todos os abusos.

No YouTube, podem-se encontrar duas ou três versões dessa canção. Eis a minha preferida.



PARA NÃO VIVER SÓ
(S. Balasko/D.Faure)

Para não viver sós
Vivemos com um cachorro
Até mesmo com rosas
Ou com uma cruz
Para não viver sós
Fazemos cinema, amamos lembranças
Uma sombra, um tema
Para não viver sós
Vivemos para a primavera e quando a primavera morre
Para a próxima primavera
Para não viver só
Te amo, te espero, para ter a ilusão
De não viver só, de não viver só

Para não viver sós, garotas amam garotas
E vemos rapazes desposar rapazes
Para não viver sós
Alguns têm crianças, crianças que são sós
Como todas as crianças
Para não viver sós
Fazemos catedrais nas quais os que são sós
Penduram-se em vitrais
Para não viver só
Te amo, te espero, para ter a ilusão
De não viver só, de não viver só

Para não viver sós, fazemos amigos
E os reunimos nas noites de tédio
Vivemos por dinheiro, sonhos, mansões
Mas nunca fizemos um caixão pra dois
Para não viver só
Eu vivo contigo, eu sou só contigo, você é só comigo
Para não viver sós
Vivemos como os que se dão a ilusão
De não viver sós.



POUR NE PAS VIVRE SEUL
(S. Balasko/D.Faure)

Pour ne pas vivre seul
On vit avec un chien
On vie avec des roses
Ou avec une croix
Pour ne pas vivre seul
On s'fait du cinéma, on aime un souvenir
Une ombre, n'importe quoi
Pour ne pas vivre seul
On vit pour le printemps et quand le printemps meurt
Pour le prochain printemps
Pour ne pas vivre seul
Je t'aime et je t'attends pour avoir l'illusion
De ne pas vivre seule, de ne pas vivre seule

Pour ne pas vivre seul, des filles aiment des filles
Et l'on voit des garçons épouser des garçons
Pour ne pas vivre seul
D'autres font des enfants, des enfants qui sont seuls
Comme tous les enfants
Pour ne pas vivre seul
On fait des cathédrales où tous ceux qui sont seuls
S'accrochent à une étoile
Pour ne pas vivre seul
Je t'aime et je t'attends pour avoir l'illusion
De ne pas vivre seule

Pour ne pas vivre seul, on se fait des amis
Et on les réunit quand viennent les soirs d'ennui
On vit pour son argent, ses rêves, ses palaces
Mais on a jamais fait un cercueil à deux places
Pour ne pas vivre seul
Moi je vis avec toi, je suis seule avec toi, tu es seul avec moi
Pour ne pas vivre seul
On vit comme ceux qui veulent se donner l'illusion
De ne pas vivre seuls.

9 de maio de 2007

À quoi ça sert l'amour?

Ontem, no GNT, Astrid Fontenelle e Marília Gabriela falavam, discreta e rapidamente, é claro, sobre seu gosto pela juventude.

Como a entrevista com Astrid, para mim, a despeito dos esforços de Marília Gabriela, não parecia render muito mais que isso, fui transportado a uma cena que obviamente não presenciei, mas que daria meu exemplar autografado de Gabriela Mistral para tê-la presenciado.

Como eu queria ter estado lá, em um canto do bureau que partilhavam Edith Piaf (1915-1963) e seu secretário-marido Théo Sarapo (Théophanis Lamboukas, 1936-1970), quando ambos trocaram o primeiro beijo. Que chavão imaginativo saboroso! Tremo só de evocá-lo! Amo a história da mosquinha bisbilhoteira. Só não gosto quando ela é esmagada.

Eu imagino a carinha amassada da Edith iluminada pelo vigor cacarejante de Théo, tal qual se pode ver em uma gravação histórica para a TV, que data de 62, quando cantaram juntos a irresistível "À quoi ça sert l'amour", de Michel Emer.

Edith, com seus 47 anos em fiapos, e Théo, 28 testosterônicos anos incompletos, protagonizaram um encontro tão improvável quanto surpreendente.

(A primeira versão da gravação, que não foi ao ar, trazia Edith par terre, agarrada à perna esquerda de Théo enquanto uivava a última estrofe da canção. Essa versão perdeu-se juntamente com a prova de que Jean Cocteau morreu ou começou a morrer no instante em que soube que Edith morrera. O secretário particular de Cocteau, então com 12 anos e meio contados a partir da gestação, jamais confirmaria o fato, atendendo ao pedido de Jean Marais.)

Na falta de apresentar aqui exatamente o vídeo do encontro memorável a que faço alusão - que inclui o lava-pés imaginário -, apresento a letra da canção e, em seu título, um link para uma versão do dueto no YouTube.



A QUOI ÇA SERT L'AMOUR
(Michel Emer, 1962)

A quoi ça sert l'amour ?
On raconte toujours
Des histoires insensées.
A quoi ça sert d'aimer ?

L'amour ne s'explique pas !
C'est une chose comme ça,
Qui vient on ne sait d'où
Et vous prend tout à coup.

Moi, j'ai entendu dire
Que l'amour fait souffrir,
Que l'amour fait pleurer.
A quoi ça sert d'aimer ?

L'amour ça sert à quoi ?
A nous donner d' la joie
Avec des larmes aux yeux...
C'est triste et merveilleux !

Pourtant on dit souvent
Que l'amour est décevant,
Qu'il y en a un sur deux
Qui n'est jamais heureux...

Même quand on l'a perdu,
L'amour qu'on a connu
Vous laisse un goùt de miel.
L'amour c'est éternel !

Tout ça, c'est très joli,
Mais quand tout est fini,
Il ne vous reste rien
Qu'un immense chagrin...

Tout ce qui maintenant
Te semble déchirant,
Demain, sera pour toi
Un souvenir de joie !

En somme, si j'ai compris,
Sans amour dans la vie,
Sans ses joies, ses chagrins,
On a vécu pour rien ?

Mais oui ! Regarde-moi !
A chaque fois j'y crois
Et j'y croirai toujours...
Ça sert à ça, l'amour !
Mais toi, t'es le dernier,
Mais toi, t'es le premier !
Avant toi, 'y avait rien,
Avec toi je suis bien !
C'est toi que je voulais,
C'est toi qu'il me fallait !
Toi qui j'aimerai toujours...
Ça sert à ça, l'amour !...

8 de maio de 2007

Marianne Moore

Há alguns anos, solitária ou conjuntamente, E. e eu temos traduzido alguns poemas de Marianne Moore & Cia (Williams, Pound etc). Semana passada, escandalizado com a pobreza de uma tradução de Moore publicada na única coletânea de poemas seus disponível no Brasil, felizmente já esgotada, decidi fazer a tradução abaixo que, se não é muito sonora (o que E. chama de quase-prosa, sonoridade "low profile") ao menos é legível (no limite, "didática").

O leitor atento, que resolver recorrer ao texto original apresentado abaixo, perceberá que evitei manter as rimas em "al" que Marianne Moore semeou por todo o poema. Procurar restituir esse recurso em português com propriedade consiste em um desafio inglório, que não achei prudente perseguir.

(Infelizmente, por conta das limitações técnicas do Blogger, não pude restituir a disposição exata do poema, que tem suas duas estrofes conclusivas alinhadas um pouco mais à direita.)



PARA UMA GIRAFA

Se é inaceitável, na verdade, mortífero
ser pessoal e indesejável

ser literal — ou até mesmo nocivo
se o olho não é inocente — quer dizer que

alguém pode viver só com as folhinhas do topo
acessíveis só ao bicho mais alto? —

do qual a girafa é o exemplo mais vivo —
o animal infreqüentável.

Quando tem assolado seu espírito,
uma criatura pode ser intragável

isso seria irresistível;
para ser precisa, excepcional

já que menos freqüentável
que certo animal emocionalmente inapto.

Por fim,
o consolo da metafísica
pode ser profundo. A existência, em Homero,

é falha; a transcendência, condicional;
“o caminho do pecado à redenção, eterno.”


Marianne Moore

(De “Tell me, tell me”, 1966)

Tradução de Jean Cristtus Portela



TO A GIRAFFE

If it is unpermissible, in fact fatal
to be personal and desirable

to be literal — detrimental as well
if the eye is not innocent — does it mean that

one can live only on top leaves that are small
reachable only by a beast that is tall? —

of which the giraffe is the best example —
the unconversational animal.

When plagued by the psychological,
a creature can be unbearable

that could have been irresistible;
or to be exact, exceptional

since less conversational
than some emotionally-tied-in-knots animal.

After all
consolations of the metaphysical
can be profound. In Homer, existence

is flawed; transcendence, conditional;
“the journey from sin to redemption, perpetual.”

7 de maio de 2007

Um mascate

"Um mascate", escrito no começo de 2003, é um dos meus textos "preferidos" (fico pensando se um artíficie tem mesmo direito a um tal rasgo de vontade). Em circunstâncias que não valem o esforço de explicitá-las, vim a traduzi-lo para o francês há alguns meses.

Citar-se nos próprios textos, traduzir os próprios textos... A torrente morna e acolhedora do narcisismo! Negá-la ou evitá-la seria incorrer na cilada escandalosa da falsa modéstia. La honte!



UM MASCATE

Um talento mínimo
o ofício exigia
("the age demanded",
segundo o véio ezra)

Talento de piloto automático
laranja epistemólogo, útil otário.
À ciência imolar cem vidas
um boi por bibliografia.

Cada hecatombe, uma teoria tímida
consagrada à histeria da pesquisa.

Em trânsito incerto, chega-lhe a preguiça:
sacoleiro bibliopata, mascate da ciência.

2003


COMMIS VOYAGEUR DE LA SCIENCE

Un talent mineur
Son métier demandait
(« The age demanded »,
D'après Ezra, le vieux)

Talent d'un pilot automatique
Pieux épistémologue, crétin utile
A la science il immolait cent âmes
Un boeuf par bibliographie

A chaque hécatombe, une théorie vierge
Consacrée à l'hystérie de la recherche

Juste deux pages, le voilà proie
De la paresse, ce camelot bibliopathe
Commis voyageur de la Science.


2007

6 de maio de 2007

Idos de 2007

Na vigília da véspera, quase lá, tomo em tradução a Konstantinos Kaváfis o mote dos meus vinte e nove anos:


IDOS DE 1901

Havia nele algo de notável
que a despeito da devassidão de seus hábitos
e de sua grande experiência no amor,
apesar da correspondência que se podia observar
entre a sua idade e o comportamento que adotava,
havia momentos - ainda que bem raros,
para falar a verdade - em que dava a impressão
de ter ainda a carne praticamente intocada.

A beleza de seus vinte e nove anos,
tão experimentada no prazer,
por momentos lembrava estranhamente
um adolescente que - com uma espécie de inaptidão - entrega
pela primeira vez seu corpo casto ao amor.

1927

(J. C. P.)


JOURS DE 1901

Il y avait chez lui ceci de particulier
qu’en dépit de la dissolution de ses mœurs
et de sa grande expérience de l’amour,
malgré la correspondance qu’on pouvait observer
entre son âge et le comportement qu’il adoptait,
arrivaient des moments - bien qu’à vrai dire
extrêmement rares - où l’impression qu’il donnait
était celle d’une chair pratiquement intacte.

La beauté de ses vingt-neuf ans,
si éprouvée par le plaisir,
il y avait des moments ou elle rappelait étrangement
un adolescent qui - avec une sorte de maladresse - livre
pour la première fois son corps chaste à l’amour.

(Constantin Cavafis, En attendant les barbares et autres poèmes. Traduit du grec et présenté par Dominique Grandmont, Gallimard, 2003, p. 194)


ΜΕΡΕΣ ΤΟΥ 1901

Τούτο εις αυτόν υπήρχε το ξεχωριστό,
που μέσα σ’ όλην του την έκλυσι
και την πολλήν του πείραν έρωτος,
παρ’ όλην την συνειθισμένη του
στάσεως και ηλικίας εναρμόνισιν,
ετύχαιναν στιγμές — πλην βέβαια
σπανιότατες — που την εντύπωσιν
έδιδε σάρκας σχεδόν άθικτης.

Των είκοσι εννιά του χρόνων η εμορφιά,
η τόσο από την ηδονή δοκιμασμένη,
ήταν στιγμές που θύμιζε παράδοξα
έφηβο που —κάπως αδέξια— στην αγάπη
πρώτη φορά το αγνό του σώμα παραδίδει.

(Από τα Ποιήματα 1897-1933, Ίκαρος 1984)