25 de março de 2009

Inédito sem data

Um inédito (é claro!) de datação incerta... 2004/2005?


FLORZINHA, MON CHER

Florzinha, mon cher
são milagres plissados
cada pétala sua (quase embargo)
não é qualquer

Seus antecedentes são claros:
A resistência feroz da
sua semente hidrófoba
A histeria solar

Faça outra casca, miosótis-demônio
Mesmo eu, o virgem venéreo
não aceito seus motivos –
Entendo somente o risco

do amor nutrido à
seita da carniça fina:

Amante, abutre, artista.

18 de março de 2009

Os analectos de Jean-Lúcio [1]

"O aforismo narrativo prevaleceu do oriente ao ocidente:
os koan zen, os analectos de Confúcio, Montaigne,
La Rochefoucauld, Pascal, Roland Barthes...".
P.-C. Naje, em Aforismos ensaísticos





Disse o Mestre: “A completa lucidez, essa janela no nevoeiro, não me alcançará. Vou antecipá-la, vou sondá-la sempre do futuro, tendo o cuidado de falar a seu respeito sempre no passado”.

*

Logo após um fausto banquete, confiou Jean-Lúcio a seu círculo mais íntimo: “Não contente em protagonizar um fato irritantemente constrangedor, B. faz questão de rememorá-lo. E de pedir desculpas – que não convencem nem a ele mesmo”.

*

É claro que alguém profundamente vil está por trás daquele recurso do MSN que permite aos usuários saberem se seu parceiro de batepapo está escrevendo ou não. Discrição era tudo o que o Mestre exigia.

*

B. ama desavergonhadamente e usa sábios clichês quando fala sobre monogamia. Já T. diz que ama pra valer, mas que quando vira puta, vira puta, e que, em puta, ele não se reserva limites. “Incerto é o meio do caminho do meio”, limitou-se a observar Jean-Lúcio.

*

O desaparecido J. – que encenou o próprio sumiço e acabou sumindo – queria não querendo, partia tão logo chegava e sorria assim que falava.

*

Escreveu o Mestre na parede de seu casebre: “Um silêncio de MSN dura uma miríade de segundos”.

*


Discípulos próximos afirmam que Jean-Lúcio não raramente advertia: “Amar é usar sempre a mesma túnica rota”.

*

Teorias obscuras e sacerdotes crédulos em demasia: eis toda a ruína da tradição.

.
.
.

10 de março de 2009

Ensaios para montar [5]

.
.
.

RETRATO DE UMA SEREIA QUANDO JOVEM


Sereia-medusa, menino-austro da deserta enseada,
Equilibrista do coral frágil da derrocada.
O farol queima seus olhos
A cada varredura, uma cicatriz,
Sua voz é ouvida ainda mais pura.

Nos destroços, na água revolta e escura,
No seu trimbre grave e arguto,
As promessas ganham o fundo.

Na ponta da cauda, um astrolábio voluntarioso
Que reordena a carta celeste
Ao sabor do novo, do gentil desconhecido
Quase virado pedra — e já sem fôlego,
Enquanto seu canto silente
Emudece e enrijece o corpo —
Um aventureiro que, só podendo mexer os olhos,
Sussurra e repousa o olhar em sua boca pequena
E nas escamas que fazem brilhar seu contorno.


J. C. P.
Março de 2009

5 de março de 2009

Duas canções de Auden

W. H. Auden (1907-1973)


Este díptico de Auden, que está certamente entre seus poemas mais “fáceis” e mais tocantes, reúne dois poemas compostos no final da década de 1930 para a cantora e atriz Hedli Anderson (1907-1990).

A música caudalosa da poesia de Auden não sei deixa facilmente traduzir. A golpes poundianos de simplificações grosseiras, inversões duvidosas, intromissões indevidas, em suma, de muita gambiarra e vista grossa, pode-se chegar a algum resultado, ainda que prolixo e aproximativo. Com todas as desculpas, remorsos e adaptações necessários, ei-lo:




DUAS CANÇÕES PARA HEDLI ANDERSON


I

Cortem o telefone, os relógios parem todos,
Impeçam de ladrar o cão com um suculento osso,
Silenciem os pianos e com tambor abafado
Tragam o caixão, deem passagem aos enlutados.

Deixem aviões a circular, lamentando no alto
Compondo no céu a mensagem: Ele está morto.
Coloquem nos pescoços brancos das pombas tiras de crepom,
E que os guardas de trânsito vistam luvas pretas de algodão.

Ele foi meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste.
Meu descanso de Domingo e minha semana de trabalho,
Meu meio-dia, minha meia-noite, meu papo, minha prece;
Pensei que esse amor duraria para sempre: Eu estava errado.

Das estrelas agora não preciso: eliminem cada uma;
Desmantelem o sol e empacotem a lua;
Entornem o oceano e a floresta arrasem;
Agora jamais, para nada, me aprazem.


II

Ah, o vale onde no verão eu e meu único amado,
Margeando o rio profundo, andávamos lado a lado,
Enquanto flores aos nossos pés e no alto passarinhos
Discorriam suavemente sobre amor correspondido;
Recostei-me em seu ombro; “Meu amado, comemora...”:
Mas ele franziu o cenho de trovão e foi-se embora.

Aquela sexta perto do Natal na memória permanece,
Quando fomos à matinê do Baile Beneficente,
O chão era tão brilhante e o som da banda estrondoso
E meu amado tão belo que me senti orgulhoso;
“Abraça-me forte, querido, dancemos até a aurora”:
Mas ele franziu o cenho de trovão e foi-se embora.

Como poderei esquecer aquela ópera soberba,
Quando a música jorrava de cada rica estrela?
Diamantes e pérolas reluziam dependurados
Sobre cada traje de seda dourado ou prateado;
“Ah, querido, estou nas nuvens,” sussurrei na hora:
Mas ele franziu o cenho de trovão e foi-se embora.

Ah, mas ele era gracioso como um jardim florido
Como a grande Torre Eiffel era alto e esguio,
Quando a valsa ecoou naquele longo caminho
calaram em meu coração seus olhos e seu sorriso;
“Casa-te comigo, quero amá-lo e servir-te sem demora”:
Mas ele franziu o cenho de trovão e foi-se embora.

Ah, noite passada sonhei contigo, amado algoz,
Tinhas em uma mão a lua e na outra o sol,
O mar era azul e verde era a relva
Um tamborim afinado era cada estrela;
Dez mil milhas no fundo do abismo estou agora:
Mas franziste o cenho de trovão e foste embora.




TWO SONGS FOR HEDLI ANDERSON


I

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He Is Dead,
Put crêpe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever: I was wrong.

The stars are not wanted now: put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Pour away the ocean and sweep up the wood.
For nothing now can ever come to any good.


II

O the valley in the summer where I and my John
Beside the deep river would walk on and on
While the flowers at our feet and the birds up above
Argued so sweetly on reciprocal love,
And I leaned on his shoulder; 'O Johnny, let's play':
But he frowned like thunder and he went away.

O that Friday near Christmas as I well recall
When we went to the Charity Matinee Ball,
The floor was so smooth and the band was so loud
And Johnny so handsome I felt so proud;
'Squeeze me tighter, dear Johnny, let's dance till it's day':
But he frowned like thunder and he went away.

Shall I ever forget at the Grand Opera
When music poured out of each wonderful star?
Diamonds and pearls they hung dazzling down
Over each silver and golden silk gown;
'O John I'm in heaven,' I whispered to say:
But he frowned like thunder and he went away.

O but he was fair as a garden in flower,
As slender and tall as the great Eiffel Tower,
When the waltz throbbed out on the long promenade
O his eyes and his smile they went straight to my heart;
'O marry me, Johnny, I'll love and obey':
But he frowned like thunder and he went away.

O last night I dreamed of you, Johnny, my lover,
You'd the sun on one arm and the moon on the other,
The sea it was blue and the grass it was green,
Every star rattled a round tambourine;
Ten thousand miles deep in a pit there I lay:
But you frowned like thunder and you went away.


W. H. Auden, em Tell me the truth about love (Vintage Books, 1994)
Trad. J. C. P.

4 de março de 2009

A praga do plágio



Não tenho o hábito de comentar aqui os blogs de que gosto, mas o caso de Não gosto de plágio, de Denise Bottmann, é especial tanto por sua "utilidade pública" quanto pela pertinência e gravidade das denúncias que faz.

Garimpando e cotejando plágios de tradução das mais (in)suspeitas editoras brasileiras (em livros que abarrotam as prateleiras e gôndolas mais próximas!), Denise segue descendo o reio na canalha que, à luz de nossas lâmpadas trêmulas e óculos contorcidos, rouba traduções consagradas e picota clássicos.

Eis um material que merece uma leitura demorada - leitura que se converte em prazer e pasmo a cada post.

2 de março de 2009

Poemas de Ibn al-Mu'tazz

"Dois amantes", pintura de Riza-i Abbasi (1565-1635).




AMEAÇA

Branca gazela cuja beleza nos fascina,
olhos que fingem dormir...

Ah! O ferrão ameaçador do escorpião sobre sua fronte,
eriçado, bem perto das rosas do seu rosto.


*


PRECE

Ó, Deus, se dele não posso ter o abraço
e se alegria não há depois de sua longa recusa,

cura o mal que sinto ao encontrar seus olhos,
e que uma longa barba envolva seu rosto! (1)


*


VINHO PURO

Alguém diria que o vinho puro
foi extraído de suas faces
e que as uvas se oferecem a quem as colhe
na sombra cacheada dos seus cabelos.

Quando eu o contemplo, meus olhos
se esquecem de piscar:
E se arregalam
de espanto maravilhado!


*


PUDOR

Quando me via se enrubescia de vergonha
como se sobre sua face eu tivesse deixado cair
a flor rubra da romã.



IBN AL-MU’TAZZ (861-908), em La Poésie arabe (Phébus, 1995)
Trad. J. C. P.

_______________________

(1) Ibn al-Mu'tazz era um grande admirador de rostos imberbes.