28 de maio de 2009

Analíticas do Poema

Limpando velhas pastas, encontrei este texto de 2003, que tratei de reler e de retocar aqui e ali, por puro falso decoro. No conjunto, o texto é bem irregular, mas ainda continua atual se pensarmos nos problemas práticos que encontramos na análise do poema.



Analíticas do Poema


1. O poema é a ilha íntima, ferida, circunscrita por humores e pele sadia.

2. O poema é um esforço de linguagem (vontade de falar) que, obrigatoriamente, deve ser expresso em língua (meio de falar). Bem-sucedido o poema, mais a linguagem nele ruge e menos legível ele emerge à leitura.

3. Não se deve ler um poema tendo como primeiro horizonte a representação da realidade imediata, como se ele fosse o comentário das coisas que existem, um apêndice à existência material do mundo (M. Rifatterre). O poema é único, fechado em si, ainda que nele habite a força primordial de todos os poemas já escritos (O. Paz).

4. Começar a análise do poema diferenciando seus recursos de expressão e conteúdo (decisão puramente metodológica) ainda é a escolha mais prudente nestes dias cegos.

5. A expressão, ou melhor, a forma da expressão (L. Hjelmslev) do poema é constituída, no plano sonoro, de sons organizados segundo determinados princípios fonológicos e, no plano visual, por sinais gráficos (o alfabeto) investidos de valores fonéticos e semânticos.

6. A forma da expressão é responsável por muitos dos efeitos estéticos do poema. É nela que o poeta pode distribuir determinados fonemas, alternando-os, omitindo-os, reiterando-os segundo seus propósitos expressivos. Aliteração é o nome das recorrências sonoras consonantais. A assonância é o nome das recorrências sonoras vocálicas. Obviamente, há muitas outras figuras de construção que descrevem a forma da expressão da língua, mas reter a existência dessas duas é o suficiente para uma primeira visão do material expressivo do poema.

7. Não bastando o poema poder existir como um gracejo sonoro ou um mantra, ele ainda significa algo! Eis a maravilha da forma do conteúdo no poema.

8. A verificação do sentido literal ou primário ou denotativo das palavras (paradigmas) e frases (sintagmas) é o meio consagrado para principiar a análise do poema. É comum valer-se do dicionário para o estabelecimento desse sentido denotativo, já que o dicionário traz os usos mais comuns do léxico (cuidado: o dicionário registra muitas vezes o sentido das palavras na perspectiva paradigmática, o que, devido ao sentindo encontrar-se na RELAÇÃO (no sintagma), pode ser uma armadilha). A partir desse “grau zero” de significação é que se faz o reconhecimento da metáfora ou sentido conotativo.

9. A estruturação da análise da forma do conteúdo do poema pode ocorrer (entre tantas outras) da seguinte maneira: a) Observação das disjunções (diferenças, transformações) temporais; b) Observação das disjunções espaciais; c) Observação das disjunções actoriais (atores = personagens). Pode-se montar uma análise balizada pela construção das figuras no poema, mas se deve ter em mente que as figuras sempre revelarão, basicamente, sentidos temporais, espaciais e actoriais. É recomendável que o analista procure fazer um quadro de tipos de figuras e, em seguida, passe a organizá-las em contrastes e oposições. Ex: Encontra-se num poema a figura “pátina esmaecida do caminho” e, mais a frente, a figura “verniz radiante da derrocada”. Trata-se provavelmente de elencá-las no rol das figuras espaciais, mas opô-las semanticamente.

10. Um método eficaz na descrição e classificação das figuras do poema é a distinção entre isotopia temática (abstrata, conceitual) e figurativa (concreta, figural). Isotopia é um tipo de predominância, de ideia fixa, é a concentração do sentido através de sua reiteração. Quando a isotopia é temática, por exemplo, encontraremos, em um texto dado, as “joias”, o “vestido”, o “ar de superioridade” como figuras marcadas pela isotopia da /riqueza/ e, dependendo do texto em questão, da /prepotência/, da /arrogância/. Quando a isotopia é figurativa, teremos essa reiteração nas próprias figuras, como em “mar”, “espuma”, “barco”, “vela”, “marinheiro”, etc.

11. Na análise do poema, procure segmentar o texto (Sequência I, II, III, etc.) levando em consideração os critérios expostos no item 9. Tal medida ajudará você a orientar-se e a fazer referência às várias partes do texto, além de demonstrar que você (segmentando) já está analisando o texto. Segmentar é a primeira forma de analisar, é a primeira forma de evidenciar as disjunções (diferenças, transformações) no texto.

12. Quando se faz referência a uma (um lexema) ou mais figuras (um sintagma lexical) do texto, usam-se aspas (ex: “olho”, “olho de gato”). Quando se trata de referenciar temas (grandeza semântica) usam-se barras (ex: /circularidade/, /morte/, /alegria/).

13. Respeitar o texto, procurar restituir o sentido investido pelo enunciador (a inteligência poética que compõe) e empregar o máximo de criatividade e estilo próprios na feitura da análise é o que todo analista deveria buscar.

14. Na impossibilidade de verificar citações (nomes de pessoas, obras, cidades, etc.), é importante registrar a hipótese mais sensata e reconhecer as próprias limitações.

15. Durante a análise, sempre que se tratar da construção do sentido do poema, empregar o termo “enunciador” ao invés do nome do autor do poema. A semiótica entende, por exemplo, que Drummond teve uma existência física, corporal, que Drummond foi “gente”, mas que teve sobretudo (e tem) um existência textual, tão física quanto a outra, que é a existência que a Semiótica analisa. Isso não equivale a matar (mais uma vez) o homem Drummond (até porque sabemos bem que o homem é quem molda a Obra), mas, sim, a respeitar o Drummond de papel, o Drummond que, dominando a arte da linguagem verbal, dentro de um estilo projeta outros tantos e se eterniza pela força do significante e do significado linguísticos.

16. Lembre-se: não é o autor que “quis dizer...”. É o texto que “diz ou parece dizer...”. O que o autor quis dizer é diferente do que ele disse de fato. O poema só é a aparência do que se pretendeu dizer. E, como toda aparência, o poema pode parecer com outros tantos dizeres.

J. C. P.
Fevereiro de 2003

6 de maio de 2009

Os votos da teoria

Ao mestre escarninho...



O PROFESSOR

Chamam-no por vezes professor e nessa maneira
De dizer há todo um quadro, uma cena de Kaváfis
Um desenho em um jarro, uma ode ao prazer dócil
Em que o ar é denso e a luz projeta suor e poeira.

Mas o professor não se confunde com o mestre
Grego, é a primeira lição que o aprendiz retém
Seu ensino é estéril, asséptico, nenhuma verve
Nada vibra ou comove, nenhuma culpa também.

A teoria exige mais rigor quanto mais é austera,
Um catre estreito, pedras por genuflexório
São toda a regalia que espera
Em troca do “minimum epistemológico”.

Tolo e dileto preceptor, apicultor voraz
Da atenção alheia, refém de seus preferidos
E preferidas, hipócrita empedernido
Algoz do que lhe compraz.


J. C. P.
maio de 2009