30 de julho de 2009

Da série "Ensaios para montar" [6]

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O JARRO



Este jarro despreza o olhar
Refratado em sua base circular
Mal traçada de um côncavo granulado.
Um jarro em que poucos derramaram a curva límpida
Da água, cujo esmalte gasto como um véu roto
No contorno do bocal – o gargalo levemente disforme –
Denuncia o triunfo do barro.

Poucas nuanças de tabaco e terracota costeiam
O longo do jarro e se coalham no seu bojo.
A saturação da cor dá a medida do seu peso,
Como a imperfeição da forma lhe confere leveza.

Um menino o deixa cair por falta de modos.
A senhora refresca o rosto com a água dele vertida
Enquanto a alça se rompe no ponto de equilíbrio.
Um monge fere ainda mais sua borda
Fazendo trovejar seu cajado.

Ao observador não resta mais do que a especulação
Que junta seus cacos, antes de um esgar premonitório
Que reconstitui o jarro aberto, couro lustroso esticado
Como uma tapeçaria em que quase se pode ler –
Lascas finas de barro e chão, algumas mais espessas,
E arredondadas e pontiagudas – uma inscrição esgarçada
Que se ramifica em fiapos.

Este jarro despreza o olhar
E, mais que fazer jorrar a água,
Ele parece ter sido esculpido com água jorrada
De modo que neste jarro qualquer derramamento
Se faz segundo a economia estrita do desperdício.

J. C. P.
julho de 2009

20 de julho de 2009

Inédito de Tal a Fuga




JOGADOR, ESTETA


Só mais uma no maço
nesta mesa de sargaços
detentora de descartes
arbitrários, nada fáceis

Este ouropel é mais do que eu poderia supor
Fosse um bumerangue sob custódia, um ioiô
seria eternamente descartado e recobrado
carta sensível ao meu dom

Baixa a tiragem desse naipe
O parceiro exige o bate de um leque
legendário, tarefa do renitente
ás de ouros, um pingente.


J. C. P.

1 de julho de 2009

Os analectos de Jean-Lúcio [2]

O Mestre perguntava sempre sem muito ânimo, com a falta de ênfase que lhe era tão impossível quanto própria: de que são feitos os desertores?

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Pin amava a língua dos nobres, mas a exercitava sem domínio ou paixão. Mêncio denunciava o contrassenso em alta voz: “alguém que pensa ser traído pelo dialeto da sua terra natal jamais forjará um estilo”.

*

“Um homem de princípios nada pode nos dizer sobre a dignidade”, bradava com frequência Kon. No que o Mestre se limitava a retorquir: “o velho Kon não se engana quando busca a dignidade e nada é menos digno do que isso”.

*

Sabendo que naquela tarde encontraria o amado discípulo, Jean-Lúcio estirou o pano cinza e espesso no qual fazia tombar as varetas escuras do Grande Livro e – antes de soltá-las em desordem no tecido impecavelmente alinhado – dirigiu-se a seu círculo em versos lacônicos:

A túnica com que cingiram
Meus ombros é a lição pura
Da compaixão súbita –
Cálida veste cujo perfume
Conduz-me ao Caminho!

*

O jovem Lao, escrivão real que praticava a arte da caligrafia e da gramática como poucos, procurou o Mestre para saber o que seria de sua posição quando a Casa de Tzi deixasse de ser a única escola a oferecer homens doutos ao imperador. Disse Jean-Lúcio: “a arte da escrita nada tem a ver com os sábios métodos de Tzi ou com o Grande Imperador e sobreviverá a ambos”.

* * *

28 de maio de 2009

Analíticas do Poema

Limpando velhas pastas, encontrei este texto de 2003, que tratei de reler e de retocar aqui e ali, por puro falso decoro. No conjunto, o texto é bem irregular, mas ainda continua atual se pensarmos nos problemas práticos que encontramos na análise do poema.



Analíticas do Poema


1. O poema é a ilha íntima, ferida, circunscrita por humores e pele sadia.

2. O poema é um esforço de linguagem (vontade de falar) que, obrigatoriamente, deve ser expresso em língua (meio de falar). Bem-sucedido o poema, mais a linguagem nele ruge e menos legível ele emerge à leitura.

3. Não se deve ler um poema tendo como primeiro horizonte a representação da realidade imediata, como se ele fosse o comentário das coisas que existem, um apêndice à existência material do mundo (M. Rifatterre). O poema é único, fechado em si, ainda que nele habite a força primordial de todos os poemas já escritos (O. Paz).

4. Começar a análise do poema diferenciando seus recursos de expressão e conteúdo (decisão puramente metodológica) ainda é a escolha mais prudente nestes dias cegos.

5. A expressão, ou melhor, a forma da expressão (L. Hjelmslev) do poema é constituída, no plano sonoro, de sons organizados segundo determinados princípios fonológicos e, no plano visual, por sinais gráficos (o alfabeto) investidos de valores fonéticos e semânticos.

6. A forma da expressão é responsável por muitos dos efeitos estéticos do poema. É nela que o poeta pode distribuir determinados fonemas, alternando-os, omitindo-os, reiterando-os segundo seus propósitos expressivos. Aliteração é o nome das recorrências sonoras consonantais. A assonância é o nome das recorrências sonoras vocálicas. Obviamente, há muitas outras figuras de construção que descrevem a forma da expressão da língua, mas reter a existência dessas duas é o suficiente para uma primeira visão do material expressivo do poema.

7. Não bastando o poema poder existir como um gracejo sonoro ou um mantra, ele ainda significa algo! Eis a maravilha da forma do conteúdo no poema.

8. A verificação do sentido literal ou primário ou denotativo das palavras (paradigmas) e frases (sintagmas) é o meio consagrado para principiar a análise do poema. É comum valer-se do dicionário para o estabelecimento desse sentido denotativo, já que o dicionário traz os usos mais comuns do léxico (cuidado: o dicionário registra muitas vezes o sentido das palavras na perspectiva paradigmática, o que, devido ao sentindo encontrar-se na RELAÇÃO (no sintagma), pode ser uma armadilha). A partir desse “grau zero” de significação é que se faz o reconhecimento da metáfora ou sentido conotativo.

9. A estruturação da análise da forma do conteúdo do poema pode ocorrer (entre tantas outras) da seguinte maneira: a) Observação das disjunções (diferenças, transformações) temporais; b) Observação das disjunções espaciais; c) Observação das disjunções actoriais (atores = personagens). Pode-se montar uma análise balizada pela construção das figuras no poema, mas se deve ter em mente que as figuras sempre revelarão, basicamente, sentidos temporais, espaciais e actoriais. É recomendável que o analista procure fazer um quadro de tipos de figuras e, em seguida, passe a organizá-las em contrastes e oposições. Ex: Encontra-se num poema a figura “pátina esmaecida do caminho” e, mais a frente, a figura “verniz radiante da derrocada”. Trata-se provavelmente de elencá-las no rol das figuras espaciais, mas opô-las semanticamente.

10. Um método eficaz na descrição e classificação das figuras do poema é a distinção entre isotopia temática (abstrata, conceitual) e figurativa (concreta, figural). Isotopia é um tipo de predominância, de ideia fixa, é a concentração do sentido através de sua reiteração. Quando a isotopia é temática, por exemplo, encontraremos, em um texto dado, as “joias”, o “vestido”, o “ar de superioridade” como figuras marcadas pela isotopia da /riqueza/ e, dependendo do texto em questão, da /prepotência/, da /arrogância/. Quando a isotopia é figurativa, teremos essa reiteração nas próprias figuras, como em “mar”, “espuma”, “barco”, “vela”, “marinheiro”, etc.

11. Na análise do poema, procure segmentar o texto (Sequência I, II, III, etc.) levando em consideração os critérios expostos no item 9. Tal medida ajudará você a orientar-se e a fazer referência às várias partes do texto, além de demonstrar que você (segmentando) já está analisando o texto. Segmentar é a primeira forma de analisar, é a primeira forma de evidenciar as disjunções (diferenças, transformações) no texto.

12. Quando se faz referência a uma (um lexema) ou mais figuras (um sintagma lexical) do texto, usam-se aspas (ex: “olho”, “olho de gato”). Quando se trata de referenciar temas (grandeza semântica) usam-se barras (ex: /circularidade/, /morte/, /alegria/).

13. Respeitar o texto, procurar restituir o sentido investido pelo enunciador (a inteligência poética que compõe) e empregar o máximo de criatividade e estilo próprios na feitura da análise é o que todo analista deveria buscar.

14. Na impossibilidade de verificar citações (nomes de pessoas, obras, cidades, etc.), é importante registrar a hipótese mais sensata e reconhecer as próprias limitações.

15. Durante a análise, sempre que se tratar da construção do sentido do poema, empregar o termo “enunciador” ao invés do nome do autor do poema. A semiótica entende, por exemplo, que Drummond teve uma existência física, corporal, que Drummond foi “gente”, mas que teve sobretudo (e tem) um existência textual, tão física quanto a outra, que é a existência que a Semiótica analisa. Isso não equivale a matar (mais uma vez) o homem Drummond (até porque sabemos bem que o homem é quem molda a Obra), mas, sim, a respeitar o Drummond de papel, o Drummond que, dominando a arte da linguagem verbal, dentro de um estilo projeta outros tantos e se eterniza pela força do significante e do significado linguísticos.

16. Lembre-se: não é o autor que “quis dizer...”. É o texto que “diz ou parece dizer...”. O que o autor quis dizer é diferente do que ele disse de fato. O poema só é a aparência do que se pretendeu dizer. E, como toda aparência, o poema pode parecer com outros tantos dizeres.

J. C. P.
Fevereiro de 2003

6 de maio de 2009

Os votos da teoria

Ao mestre escarninho...



O PROFESSOR

Chamam-no por vezes professor e nessa maneira
De dizer há todo um quadro, uma cena de Kaváfis
Um desenho em um jarro, uma ode ao prazer dócil
Em que o ar é denso e a luz projeta suor e poeira.

Mas o professor não se confunde com o mestre
Grego, é a primeira lição que o aprendiz retém
Seu ensino é estéril, asséptico, nenhuma verve
Nada vibra ou comove, nenhuma culpa também.

A teoria exige mais rigor quanto mais é austera,
Um catre estreito, pedras por genuflexório
São toda a regalia que espera
Em troca do “minimum epistemológico”.

Tolo e dileto preceptor, apicultor voraz
Da atenção alheia, refém de seus preferidos
E preferidas, hipócrita empedernido
Algoz do que lhe compraz.


J. C. P.
maio de 2009

25 de março de 2009

Inédito sem data

Um inédito (é claro!) de datação incerta... 2004/2005?


FLORZINHA, MON CHER

Florzinha, mon cher
são milagres plissados
cada pétala sua (quase embargo)
não é qualquer

Seus antecedentes são claros:
A resistência feroz da
sua semente hidrófoba
A histeria solar

Faça outra casca, miosótis-demônio
Mesmo eu, o virgem venéreo
não aceito seus motivos –
Entendo somente o risco

do amor nutrido à
seita da carniça fina:

Amante, abutre, artista.

18 de março de 2009

Os analectos de Jean-Lúcio [1]

"O aforismo narrativo prevaleceu do oriente ao ocidente:
os koan zen, os analectos de Confúcio, Montaigne,
La Rochefoucauld, Pascal, Roland Barthes...".
P.-C. Naje, em Aforismos ensaísticos





Disse o Mestre: “A completa lucidez, essa janela no nevoeiro, não me alcançará. Vou antecipá-la, vou sondá-la sempre do futuro, tendo o cuidado de falar a seu respeito sempre no passado”.

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Logo após um fausto banquete, confiou Jean-Lúcio a seu círculo mais íntimo: “Não contente em protagonizar um fato irritantemente constrangedor, B. faz questão de rememorá-lo. E de pedir desculpas – que não convencem nem a ele mesmo”.

*

É claro que alguém profundamente vil está por trás daquele recurso do MSN que permite aos usuários saberem se seu parceiro de batepapo está escrevendo ou não. Discrição era tudo o que o Mestre exigia.

*

B. ama desavergonhadamente e usa sábios clichês quando fala sobre monogamia. Já T. diz que ama pra valer, mas que quando vira puta, vira puta, e que, em puta, ele não se reserva limites. “Incerto é o meio do caminho do meio”, limitou-se a observar Jean-Lúcio.

*

O desaparecido J. – que encenou o próprio sumiço e acabou sumindo – queria não querendo, partia tão logo chegava e sorria assim que falava.

*

Escreveu o Mestre na parede de seu casebre: “Um silêncio de MSN dura uma miríade de segundos”.

*


Discípulos próximos afirmam que Jean-Lúcio não raramente advertia: “Amar é usar sempre a mesma túnica rota”.

*

Teorias obscuras e sacerdotes crédulos em demasia: eis toda a ruína da tradição.

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10 de março de 2009

Ensaios para montar [5]

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RETRATO DE UMA SEREIA QUANDO JOVEM


Sereia-medusa, menino-austro da deserta enseada,
Equilibrista do coral frágil da derrocada.
O farol queima seus olhos
A cada varredura, uma cicatriz,
Sua voz é ouvida ainda mais pura.

Nos destroços, na água revolta e escura,
No seu trimbre grave e arguto,
As promessas ganham o fundo.

Na ponta da cauda, um astrolábio voluntarioso
Que reordena a carta celeste
Ao sabor do novo, do gentil desconhecido
Quase virado pedra — e já sem fôlego,
Enquanto seu canto silente
Emudece e enrijece o corpo —
Um aventureiro que, só podendo mexer os olhos,
Sussurra e repousa o olhar em sua boca pequena
E nas escamas que fazem brilhar seu contorno.


J. C. P.
Março de 2009

5 de março de 2009

Duas canções de Auden

W. H. Auden (1907-1973)


Este díptico de Auden, que está certamente entre seus poemas mais “fáceis” e mais tocantes, reúne dois poemas compostos no final da década de 1930 para a cantora e atriz Hedli Anderson (1907-1990).

A música caudalosa da poesia de Auden não sei deixa facilmente traduzir. A golpes poundianos de simplificações grosseiras, inversões duvidosas, intromissões indevidas, em suma, de muita gambiarra e vista grossa, pode-se chegar a algum resultado, ainda que prolixo e aproximativo. Com todas as desculpas, remorsos e adaptações necessários, ei-lo:




DUAS CANÇÕES PARA HEDLI ANDERSON


I

Cortem o telefone, os relógios parem todos,
Impeçam de ladrar o cão com um suculento osso,
Silenciem os pianos e com tambor abafado
Tragam o caixão, deem passagem aos enlutados.

Deixem aviões a circular, lamentando no alto
Compondo no céu a mensagem: Ele está morto.
Coloquem nos pescoços brancos das pombas tiras de crepom,
E que os guardas de trânsito vistam luvas pretas de algodão.

Ele foi meu Norte, meu Sul, meu Leste e Oeste.
Meu descanso de Domingo e minha semana de trabalho,
Meu meio-dia, minha meia-noite, meu papo, minha prece;
Pensei que esse amor duraria para sempre: Eu estava errado.

Das estrelas agora não preciso: eliminem cada uma;
Desmantelem o sol e empacotem a lua;
Entornem o oceano e a floresta arrasem;
Agora jamais, para nada, me aprazem.


II

Ah, o vale onde no verão eu e meu único amado,
Margeando o rio profundo, andávamos lado a lado,
Enquanto flores aos nossos pés e no alto passarinhos
Discorriam suavemente sobre amor correspondido;
Recostei-me em seu ombro; “Meu amado, comemora...”:
Mas ele franziu o cenho de trovão e foi-se embora.

Aquela sexta perto do Natal na memória permanece,
Quando fomos à matinê do Baile Beneficente,
O chão era tão brilhante e o som da banda estrondoso
E meu amado tão belo que me senti orgulhoso;
“Abraça-me forte, querido, dancemos até a aurora”:
Mas ele franziu o cenho de trovão e foi-se embora.

Como poderei esquecer aquela ópera soberba,
Quando a música jorrava de cada rica estrela?
Diamantes e pérolas reluziam dependurados
Sobre cada traje de seda dourado ou prateado;
“Ah, querido, estou nas nuvens,” sussurrei na hora:
Mas ele franziu o cenho de trovão e foi-se embora.

Ah, mas ele era gracioso como um jardim florido
Como a grande Torre Eiffel era alto e esguio,
Quando a valsa ecoou naquele longo caminho
calaram em meu coração seus olhos e seu sorriso;
“Casa-te comigo, quero amá-lo e servir-te sem demora”:
Mas ele franziu o cenho de trovão e foi-se embora.

Ah, noite passada sonhei contigo, amado algoz,
Tinhas em uma mão a lua e na outra o sol,
O mar era azul e verde era a relva
Um tamborim afinado era cada estrela;
Dez mil milhas no fundo do abismo estou agora:
Mas franziste o cenho de trovão e foste embora.




TWO SONGS FOR HEDLI ANDERSON


I

Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He Is Dead,
Put crêpe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last for ever: I was wrong.

The stars are not wanted now: put out every one;
Pack up the moon and dismantle the sun;
Pour away the ocean and sweep up the wood.
For nothing now can ever come to any good.


II

O the valley in the summer where I and my John
Beside the deep river would walk on and on
While the flowers at our feet and the birds up above
Argued so sweetly on reciprocal love,
And I leaned on his shoulder; 'O Johnny, let's play':
But he frowned like thunder and he went away.

O that Friday near Christmas as I well recall
When we went to the Charity Matinee Ball,
The floor was so smooth and the band was so loud
And Johnny so handsome I felt so proud;
'Squeeze me tighter, dear Johnny, let's dance till it's day':
But he frowned like thunder and he went away.

Shall I ever forget at the Grand Opera
When music poured out of each wonderful star?
Diamonds and pearls they hung dazzling down
Over each silver and golden silk gown;
'O John I'm in heaven,' I whispered to say:
But he frowned like thunder and he went away.

O but he was fair as a garden in flower,
As slender and tall as the great Eiffel Tower,
When the waltz throbbed out on the long promenade
O his eyes and his smile they went straight to my heart;
'O marry me, Johnny, I'll love and obey':
But he frowned like thunder and he went away.

O last night I dreamed of you, Johnny, my lover,
You'd the sun on one arm and the moon on the other,
The sea it was blue and the grass it was green,
Every star rattled a round tambourine;
Ten thousand miles deep in a pit there I lay:
But you frowned like thunder and you went away.


W. H. Auden, em Tell me the truth about love (Vintage Books, 1994)
Trad. J. C. P.

4 de março de 2009

A praga do plágio



Não tenho o hábito de comentar aqui os blogs de que gosto, mas o caso de Não gosto de plágio, de Denise Bottmann, é especial tanto por sua "utilidade pública" quanto pela pertinência e gravidade das denúncias que faz.

Garimpando e cotejando plágios de tradução das mais (in)suspeitas editoras brasileiras (em livros que abarrotam as prateleiras e gôndolas mais próximas!), Denise segue descendo o reio na canalha que, à luz de nossas lâmpadas trêmulas e óculos contorcidos, rouba traduções consagradas e picota clássicos.

Eis um material que merece uma leitura demorada - leitura que se converte em prazer e pasmo a cada post.

2 de março de 2009

Poemas de Ibn al-Mu'tazz

"Dois amantes", pintura de Riza-i Abbasi (1565-1635).




AMEAÇA

Branca gazela cuja beleza nos fascina,
olhos que fingem dormir...

Ah! O ferrão ameaçador do escorpião sobre sua fronte,
eriçado, bem perto das rosas do seu rosto.


*


PRECE

Ó, Deus, se dele não posso ter o abraço
e se alegria não há depois de sua longa recusa,

cura o mal que sinto ao encontrar seus olhos,
e que uma longa barba envolva seu rosto! (1)


*


VINHO PURO

Alguém diria que o vinho puro
foi extraído de suas faces
e que as uvas se oferecem a quem as colhe
na sombra cacheada dos seus cabelos.

Quando eu o contemplo, meus olhos
se esquecem de piscar:
E se arregalam
de espanto maravilhado!


*


PUDOR

Quando me via se enrubescia de vergonha
como se sobre sua face eu tivesse deixado cair
a flor rubra da romã.



IBN AL-MU’TAZZ (861-908), em La Poésie arabe (Phébus, 1995)
Trad. J. C. P.

_______________________

(1) Ibn al-Mu'tazz era um grande admirador de rostos imberbes.

28 de fevereiro de 2009

Ele


Abu-Novás por Kahlil Gibran.





OBJETO DE INSPIRAÇÃO

Melhor que o teor
de todas as inteligências,
melhor que uma cidade
que o tempo fez perecer,

melhor que as ruínas
das quais o século prolongou a existência
para que as lágrimas e a tristeza
aí pudessem fluir comodamente:

uma gazela macho – cujo olhar
cobriu de descrédito
todas as outras –
ternamente sonolenta
como estupefata por sua própria beleza.

O sol – pura claridade
sobre uma vastidão de dunas
isentas de qualquer impureza – quando ele se põe
atrás de um ramo forrado de folhas,
não se mostra seu igual?


Abu-Novás (750–810), em La Poésie Arabe (Phébus, 1995)
Trad. J. C. P.

26 de fevereiro de 2009

Da série "Ensaios para montar" [4]

Os dois passos

Chegou-lhe aquele ímpeto de onde vem o poema, mas as palavras não se fixavam. Havia pensamento, mas não havia palavra. O silêncio preside muitos desses momentos – era só o que não parava de pensar. E quando pensou com essas palavras, soube à procura do que estava.

O primeiro passo seria fixar o pensamento, fazer com que da substância delicada das possibilidades brotasse uma metade de metade de concha trazida pelo mar, talhada na extremidade, róseo osso rendado de limo. Ou um caco de garrafa em que um dia se colocou uma mensagem que foi encontrada. Ou um fio de seda tingido de lilás, enrolado em um fio não tingido.

O segundo passo seria erguer o olhar, inflamar-se, capitular e escrever. E caso daí não saísse palavra, que saísse ao menos um pensamento que respondesse à gravidade da palavra.

Isso porque, por puro azar e contra todas as expectativas, a forma do poema jamais é dada de antemão.


J. C. P.
agosto de 2008/ fevereiro de 2009

23 de fevereiro de 2009

Ensaios para montar [3]

Da série "Ensaios para montar": anotação de uma conversa com M.



TODA FUMAÇA É BEM-VINDA


Toda fumaça é bem-vinda, também
a brasa quase precipitada, cinza que aterrissa.

O papel, o fumo que nele deitamos, os instrumentos
de fogo que sucedem à espera e
a conversa no tempo de um cigarro
(até que a ousadia encontre um maço)
são a sintaxe mínima da súplica -

Daquele que traga, alonga, sopra, suspira,
fuma melhor que respira.


J. C. P.
fevereiro de 2009

21 de fevereiro de 2009

Variations Brandão

J’aime bien les défis ratés d’avance. L’impossible ne chante pour moi que de la douce musique des poèmes difficiles à traduire.

Mon ami José Carlos Mendes Brandão, poète et romancier brésilien, a écrit cet ascétique haïku :

O arco-íris
atrás das grades
chora sobre a cidade.

Je vous en propose en français cinq versions:


Version rangée [#1]

L’arc-en-ciel
derrière les grilles
pleure sur la ville.


Version assortie [#2]

L’arc-en-ciel
au-delà des grilles
pleure sur la ville.


Version surréaliste [#3]

L’arc-en-ciel
derrière les barreaux
pleure sur mon chapeau.


Version surréaliste franco-brésilienne [#4]

L’arc-en-ciel
derrière les barreaux
pleure sur mon chapéu.


Version surréaliste stricto sensu [#5]

L’arc-en-larmes.

20 de fevereiro de 2009

La bêtise démultipliée

Devant la rudesse de la boutade:

L'Europe est une bêtise pleine de musées.

(Nelson Rodrigues [1912-1980], écrivain brésilien),

Monsieur Naje a fait remarquer le paradoxe:

C'est davantage la bêtise sous-développée qui se nourrit des musées de l'Europe.

(P. C. Naje [1917-1992]).

16 de fevereiro de 2009

Lustrar a palavra

O hoje esguio e depilado e sempre arredio e maledicente G. – que depois se revelaria M. e que, um pouco mais adiante, iria se revelar um tolo – disse-me não gostar de falar certas palavras por considerá-las excessivamente gays: – Evito até pronunciá-las, você não percebe como elas deformam o rosto? E seu rosto justamente se iluminava de uma careta de lascívia e dor que deixava, a despeito do recato histericamente alardeado, entrever um prazer compulsivo em simplesmente pensar nas palavras proibidas.

Minha primeira reação, depois de tossir para ganhar tempo e de cruzar um pouco mais os braços para conter meu interesse crescente por esse sintomão que se apresentava diante de mim como uma dessas plantas carnívoras de desenho animado, cuja exuberância dentada de más intenções e de lábios e recônditos escandalosamente vermelhos faz pender de cada pestilo contorcido uma gosma delatora, foi: – Sério?

Seríssimo! – sibilou G. visivelmente indisposto com a minha resposta – Eu não me atreveria, por exemplo, dizer que estou CHO-CA-DO...

Na hora, pego de surpresa, convulsionei o esgar daqueles que imploram de joelhos que se mude de assunto e argumentei que não via nada demais na palavra “chocado”, que essa palavra em si não me parecia especificamente gay, blá-blá-blá.

Pobre G.! Nessa ocasião P. C. Naje nunca me pareceu tão preciso: “Um vício: cera tão eficaz quanto supérflua que torna as palavras sempre lustrosas independentemente das mãos que as lustram”.

10 de fevereiro de 2009

Ensaios para montar [2]

Ainda a série "Ensaios para montar"...



A DESCRIÇÃO DE UM RAPAZ



Se, por encomenda, me fosse o caso de descrever
um rapaz, pergunto-me por onde começaria

um rapaz gaiato e atemporal; no material, poroso mas compacto
e cromado; na estrutura, articulado, portátil, porém estável

seria o rapaz que teria minha predileção analítica
(Vã espera: na encomenda a fortuna não é compulsória

Sequer obrigatória). Algo que é preciso aceitar
quando se exerce a especialidade, essa arte de registrar:

arte de descrever rapazes, de encontrar a frase
que desentranhará o fundo da forma, a substância.

Um desafio seria a variedade de rapaz
já que ninguém por princípio ignora

que a espécie dos rapazes é grande em número
nos cinco continentes e extramuros.

E como seria lastimável prescindir
da observação direta e indireta
da coleta explícita e sorrateira e
do contato não assistido e de
explorações ulteriores com e sem sonda!

Sempre o dilema: por onde começar?
Por sua ossatura ou por sua ergonomia?

Por seu revestimento ou por sua aderência?
Começar logo pelo estofo, medindo-lhe a luminescência,

talvez fosse o mais acertado, ainda que mais comercial
(Idéia que desagrada o outsider, o misantropo, o animal,

O debochado, o desregrado, o indiferente que eu quis ser)
Mas ao menos garantiria um prólogo difícil de esquecer.



J. C. P.
janeiro de 2009

6 de fevereiro de 2009

Alegria cifrada

Mais um poema do meu baú de Kaváfis... Que preguiça de digitar o original francês!



A GRANDE CONTA

Se eu sou feliz ou infeliz, eis uma pergunta que não me faço.
A única coisa em que penso sempre com alegria –
é que na grande conta (a conta deles, a que detesto)
com todas as suas cifras, eu não figuro,
como uma unidade entre outras. No total,
eu não fui contado. E essa alegria me basta.


(fevereiro 1897)


KONSTANTINOS KAVÁFIS, via tradução francesa de Dominique Grandmont
Tradução de J. C. P.

5 de fevereiro de 2009

Le poète-chaman

Le poète brésilien Roberto Piva n’est pas un complet inconnu au monde francophone, mais j’ai tout de même voulu consacrer au poète-chaman une petite présentation.

Piva est né à São Paulo, le 25 septembre 1937. Poète polémique et longtemps marginalisé par la critique brésilienne, Piva est devenu connu à partir des années 60 en raison de son écriture inquiète et rebelle dans la ligne de la génération beat américaine.

Les poèmes que j’ai traduits ci-dessous condensent les grands thèmes de sa poésie : l’amour des garçons, la catharsis poétique, l’éloge du corps, la fascination du primitif, en un mot, la vocation chamanique de la poésie.

Dans les propres paroles de Piva : « L’écologie du langage: les poètes brésiliens doivent laisser d’être des dégonflés pour être des sorciers » (Poesia Sempre, n. 8, juin 1997, Fundação Biblioteca Nacional (RJ), p. 355).

* * *

Piva en portugais : Obras Reunidas [Œuvres Réunies] (Trois tomes: 2005, 2006 et 2008), sous la direction de Alcir Pécora. Piva en français : Poèmes traduits par Michel Riaudel (Revue Europe, n. 919-920, 2005, p. 272, numéro spécial sur la littérature brésilienne).

* * *


la poésie voit plus loin
voilà l'esprit du feu
ma main
danse
sur le corps du garçon lunaire


a poesia vê melhor
eis o espírito do fogo
minha mão
dança
no corpo do garoto lunar


*

ton trou du cul hors de la loi
ta bite enragée
joie d'ange
dans les routes
du plaisir
langue des esprits indiens
champignon prophétisant
anarchie & délire
bouche dans mon pied
bouche dans mes couilles
poésie c'est folie
à l'excès du Jour
ouvrant la Nuit

(Plage de la Juréia, 1983)


teu cu fora da lei
teu pau enfurecido
alegria de anjo
nas estradas
do prazer
língua dos espíritos índios
cogumelo profetizando
anarquia & delírio
boca no meu pé
boca no meu saco
poesia é desatino
abrindo a Noite
ao excesso do Dia

(Praia da Juréia, 83)


de "Na parte de sombra de sua alma em vermelho" [Dans la partie d'ombre de son âme en rouge], Ciclones [Cyclones], São Paulo, 1997, p. 33-4.


***


VI.

garçon indien mon amour
pendant trois nuits l'incendie
a bouleversé le cœur des méduses
graines & racines
où les îles
élèvent
ses braises


VI.

garoto índio meu amor
por três noites o incêndio
bagunçou o coração das medusas
sementes & raízes
onde as ilhas
erguem
suas brasas


de "VII Cânticos xamânicos" [VII Chants chamaniques], Ciclones, São Paulo, 1997, p. 90.


***


Rimbaud
garçon-Panzer
cuisses d’or
de routard des étoiles
puer de l’alchimie

(Mairiporã, 1995)



Rimbaud
garoto-Panzer
coxas douradas
de mochileiro das estrelas
puer da alquimia

(Mairiporã, 95)


de « BR 116 » [Autoroute Nationale Brésilienne n. 116], Ciclones, São Paulo, 1997, p. 90.


Roberto Piva
Traduction de J. C. P.

4 de fevereiro de 2009

O berço da imagem

Nutrimo-nos da impermanência das idéias ... ou das coisas?


QUANDO TE VÊM...

Tenta guardá-las, poeta,
ainda que poucas se demorem.
As visões do teu desejo.
Verte-as, um pouco veladas, em tuas frases.
Tenta guardá-las, poeta,
quando te vêm à mente,
à noite ou no pleno fulgor do meio-dia.


QUAND ELLES SURGISSENT

Essaie de les retenir, poète,
même s'il y en a peu qui s'arrêtent.
Les visions de ton désir.
Glisse-les, à demi voilées, dans tes phrases.
Essaie de les retenir, poète,
quand elles surgissent dans ton cerveau,
la nuit ou dans le plein éclat de midi.


KONSTANTINOS KAVÁFIS, via tradução francesa de Dominique Grandmont
Tradução de J. C. P.

O número das almas

“[...] o mundo romano, mais do que o grego, vivia recorrendo a intérpretes sempre que os assuntos da administração assim exigiam. Sabemos que César mantinha com frequência tais intérpretes na Gália, e que por vezes os afastava quando tratava de assuntos muito secretos. Nada de toda essa experiência passou à ciência latina, apesar do que disse, de forma assombrosamente moderna, Ênio [240-170 a.C], em uma frase que encantou [Benjamin Lee] Whorf [1897-1941]. Ênio, poeta venerado pelos romanos, que ensinava grego e latim, que sabia o idioma osco, ao falar sobre tradução afirmava que, como sabia três línguas, “tinha três almas” (tria corda habere).

Em Historia de la lingüística desde los orígenes al siglo XX, de Georges Mounin (Gredos, Madrid, 1968, p. 103).

3 de fevereiro de 2009

Dalva, La Reine de la Voix

Les Français ont la Môme Piaf... Chez nous, la Voix, c’est Dalva de Oliveira [1917-1972]… Voici une traduction approximative d’une de ses plus belles chansons. Ne faites pas attention aux rimes !



ENFIN
(Marino Pinto - Jota Pereira)

Enfin, j'ai trouvé en toi
Ce que je cherchais
Enfin, j'ai donné à toi
Ce qui te manquait.

Nous sommes des âmes sœurs
Qui trainaient délaissées, sans amis,
Mais qui sont nées pour faire
Les mêmes chemins battus.

(On récite)
Enfin, j'ai trouvé en toi,
Ce que je cherchais
Enfin, j'ai donné à toi,
Ce qui te manquait.

(On chante)
Enfin, j'ai trouvé en toi,
Ce que je cherchais
Enfin, j'ai donné à toi,
Ce qui te manquait.

Nous sommes des âmes sœurs
Qui trainaient délaissées, sans amis,
Mais qui sont nées pour faire
Les mêmes chemins battus…



FINALMENTE
(Marino Pinto - Jota Pereira)

Finalmente, achei em você,
O que eu procurava,
Finalmente, eu dei a você,
O que lhe faltava.

Nós temos almas irmãs,
Que caminhavam, desamparadas,
Mas nasceram para seguir,
As mesmas estradas.

(Recitando)
Finalmente, achei em você,
O que eu procurava,
Finalmente, eu dei a você,
O que lhe faltava.

(Cantando)
Finalmente, achei em você,
O que eu procurava,
Finalmente, eu dei a você,
O que lhe faltava.

Nós temos almas irmãs,
Que caminhavam, desamparadas,
Mas nasceram para seguir,
As mesmas estradas....


De l’album « Dalva de Oliveira canta boleros » (Odeon, Brésil, 1959).

2 de fevereiro de 2009

Plásticas

De todas as metáforas doutas, aquela que toma a Obra por uma Pintura (ou a Alma por uma Tela) é a mais insossa que se pode imaginar...

MARCEL PROUST (apócrifo)

*

... até a invenção da metáfora do Mundo como um Livro.

ainda MARCEL PROUST (apócrifo)

*

O uso continuado deste produto pode provocar ansiedade, mania persecutória, esquizofrenia [ilegível], assim como diversas complicações [rótulo rasgado]...

ADVERTÊNCIA no rótulo de um solvente

*

Na primeira utilização, a pressão uniforme e o movimento regular e contínuo farão com que as cerdas hidratem-se e ganhem em flexibilidade e aderência.

COMO USAR um pincel de pelo de pônei

*

De vez em quando, olhe para a sua paleta e cuide para que ela não fique mais bela do que o quadro.

INTRODUÇÃO do curso prático de pintura

30 de janeiro de 2009

Sonnets Choisis de Glauco Mattoso

Há algum tempo venho traduzindo sonetos de Glauco Mattoso para o francês. Considerando o apreço que os franceses têm pela literatura erótica e satírica, é incrível (e uma lástima!) que Glauco não seja já amplamente conhecido na França.

Sempre me recrimino por não dar mais atenção a esse projeto que, além de necessário, é muito divertido. Até hoje não traduzi mais do que meia dúzia de sonetos, dos quais apenas dois dei por terminados – não sem antes submetê-los à leitura atenta do caríssimo Alfredo Fressia, poeta e tradutor uruguaio radicado no Brasil que manja tudo de poesia e de francês, além de conhecer muito bem a obra mattosiana.

Por falta de talento e paciência, renunciei à metrificação e à preservação do esquema de rimas original. Como se sabe, o soneto decassílabo é uma arte italiana que foi cultivada pela tradição literária portuguesa e brasileira (Camões, Bocage, Jorge de Lima, Bruno Tolentino, entre outros) e dificilmente encontraria um equivalente no soneto francês "moderno", que possui tradicionalmente doze sílabas. Concentrei-me nas imagens dos sonetos e, na medida do possível, procurei também recriar um pouco da melopéia dos originais brasileiros, que de tão cantantes, de tão bem escandidos, só faltam se autodeclamarem.

Eis abaixo os dois sonetos traduzidos, work in progress que Glauco já disponibilizou on-line juntamente com seus "sonetos completos" e que talvez integrem um dia meu Sonnets Choisis de Glauco Mattoso. Esses sonetos foram editados originalmente em Geléia de Rococó (Ciência do Acidente, 1999) e datam, como sua numeração indica, do começo da experiência de Glauco como sonetista, que hoje em dia já ultrapassou os três mil sonetos.



SONNET BRANLEUR [307]

Si "circle jerk" est bien "branlette en cercle",
il reste davantage démontré:
les jouets des garçons ne sont pas carrés,
c'est l'esprit des adultes qui est vierge !

En pensant aux tétons et à la chatte,
ils voient pourtant les copains tout à côté.
La libido des garçons est compliquée:
ils fourrent leur nez partout, ces camarades !

Ils n'ont pas encore de poils, mais tirer
savent-ils leurs bites en cachette,
en dévoilant les petits glands cerise-lustrés.

Se rappeler la glace et la sucette
c'est presque automatique. - L'un d'eux
flanche et suce la bande satisfaite !


SONETO PUNHETEIRO [307]

Se "circle jerk" é roda de punheta,
já fica desde logo demonstrado:
brinquedo de guri não é quadrado.
A mente dum adulto é que é careta.

Pensando nos peitinhos, na buceta,
mas vendo os coleguinhas lado a lado,
libido de menino é complicado:
bedelho mete em tudo, esse xereta!

Pentelho inda não tem, e já maneja
com toda a habilidade seu cacete,
expondo a cabecinha de cereja.

Lembrar do pirulito e do sorvete
é quase que automático. Fraqueja
um deles, e na turma faz boquete.


*


SONNET TRAVESTI [313]

L'appeler "transformiste" peu explique,
l'appeler "drag queen" ne précise point.
L'explication ne se trouve pas loin :
à la place du con on y trouve une bite.

Hormones, de la silicone, ça marque bien
la féminité de sa figure.
Peut-être soit-elle trop grosse sa pointure,
mais dans l'ensemble ça ne change rien.

Le soir le travesti risque sa peau,
il fait le trottoir, il racole à l'ombre
des voyous, des flics, des recrues sados.

Dans la froide solitude de l'aube
parfois le plaisir trouve écho:
Un cri. Un corps. Un tir. Un coup de lame.


SONETO TRAVESTI [313]

Chamar de "transformista" não explica.
Chamar de "drag queen" não fala exato.
A explicação se encontra ali no ato,
pois no lugar da cona está uma pica.

Hormônios, silicone, tudo indica
a feminilidade no seu trato.
Talvez algo maior seja o sapato,
mas no conjunto pouco modifica.

À noite pesa a barra do traveco
que faz a viração pela calçada
à cata dum bandido, um tira, um reco.

Na fria solidão da madrugada
às vezes o prazer vai ter seu eco:
Um grito. Um corpo. Um tiro. Uma facada.


Glauco Mattoso
Tradução de Jean Cristtus Portela

29 de janeiro de 2009

Não coisas, mas idéias que são coisas!

Quando Williams preconizou em poesia o método “Componha! (Não idéias, mas coisas)” – método consagrado pelos orientais e retomado antes de Williams por Pound e seu círculo – as coisas já dominavam com folga a paisagem da poesia dita moderna.

Com raras exceções, poucos foram os que tomaram real partido das idéias em poesia (Lautréamont, Ponge, Michaux?). Alguns dos que o fizeram escolheram o caminho fácil do engajamento sem ascese alguma.

Raro é aquele que se deleita ao perceber de soslaio o rendado canyon conceitual que se estende do penhasco das narrativas ao vale fundo das digressões, no qual a água ligeira se coalha de pedras a cada volteio e escorre a profusão de peixes que se projetam no laminado da manhã.

28 de janeiro de 2009

Lexicógrafo de ocasião

Após dar umas boas risadas lendo os verbetes do Dicionário inFormal da Língua Portuguesa ("O dicionário onde o português é definido por você!!!", diz o slogan), decidi arriscar uma modesta contribuição: submeti à análise do Dicionário inFormal o verbete "pintoso", que foi aprovado algumas poucas horas depois. Infelizmente, o dicionário não especifica os critérios de aprovação dos verbetes submetidos e nem diz se são, de fato, analisados por um especialista ou simplesmente "conferido" por um diletante ou geek qualquer.

Já aviso: colaborar nesse dicionário vicia...

27 de janeiro de 2009

Um ponto, não mais

Eu já suspeitava de algo nesse sentido... É o que os puristas chamam de inapelável fragilidade do homem.


UM PONTO, NÃO MAIS

O homem – seu ser essencial – é apenas um ponto. É esse único ponto que a morte engole. Ele deve tomar cuidado para não ser cercado.

Um dia, num sonho, fui rodeado por quatro cães e por um menininho maldoso, que os comandava.

A dor, a dificuldade incrível que eu tive em lhes atingir, disso sempre me lembrarei. Quanto esforço! Seguramente eu tocava seres, mas quem? De todo modo, meus adversários foram desfeitos a ponto de desaparecerem. Eu não me deixei enganar por sua aparência, acredite. Eles eram também apenas pontos, cinco pontos, mas muito fortes.

Mais uma coisa, é assim que começa a epilepsia. Os pontos começam então a andar sobre você e o eliminam. Eles sopram e você é invadido. Em quanto tempo se pode retardar uma primeira crise, é o que me pergunto.

Henri Michaux
Un point, c’est tout, de La nuit remue (Gallimard, 1967, p. 30)
Tradução de J. C. P.