28 de fevereiro de 2009

Ele


Abu-Novás por Kahlil Gibran.





OBJETO DE INSPIRAÇÃO

Melhor que o teor
de todas as inteligências,
melhor que uma cidade
que o tempo fez perecer,

melhor que as ruínas
das quais o século prolongou a existência
para que as lágrimas e a tristeza
aí pudessem fluir comodamente:

uma gazela macho – cujo olhar
cobriu de descrédito
todas as outras –
ternamente sonolenta
como estupefata por sua própria beleza.

O sol – pura claridade
sobre uma vastidão de dunas
isentas de qualquer impureza – quando ele se põe
atrás de um ramo forrado de folhas,
não se mostra seu igual?


Abu-Novás (750–810), em La Poésie Arabe (Phébus, 1995)
Trad. J. C. P.

26 de fevereiro de 2009

Da série "Ensaios para montar" [4]

Os dois passos

Chegou-lhe aquele ímpeto de onde vem o poema, mas as palavras não se fixavam. Havia pensamento, mas não havia palavra. O silêncio preside muitos desses momentos – era só o que não parava de pensar. E quando pensou com essas palavras, soube à procura do que estava.

O primeiro passo seria fixar o pensamento, fazer com que da substância delicada das possibilidades brotasse uma metade de metade de concha trazida pelo mar, talhada na extremidade, róseo osso rendado de limo. Ou um caco de garrafa em que um dia se colocou uma mensagem que foi encontrada. Ou um fio de seda tingido de lilás, enrolado em um fio não tingido.

O segundo passo seria erguer o olhar, inflamar-se, capitular e escrever. E caso daí não saísse palavra, que saísse ao menos um pensamento que respondesse à gravidade da palavra.

Isso porque, por puro azar e contra todas as expectativas, a forma do poema jamais é dada de antemão.


J. C. P.
agosto de 2008/ fevereiro de 2009

23 de fevereiro de 2009

Ensaios para montar [3]

Da série "Ensaios para montar": anotação de uma conversa com M.



TODA FUMAÇA É BEM-VINDA


Toda fumaça é bem-vinda, também
a brasa quase precipitada, cinza que aterrissa.

O papel, o fumo que nele deitamos, os instrumentos
de fogo que sucedem à espera e
a conversa no tempo de um cigarro
(até que a ousadia encontre um maço)
são a sintaxe mínima da súplica -

Daquele que traga, alonga, sopra, suspira,
fuma melhor que respira.


J. C. P.
fevereiro de 2009

21 de fevereiro de 2009

Variations Brandão

J’aime bien les défis ratés d’avance. L’impossible ne chante pour moi que de la douce musique des poèmes difficiles à traduire.

Mon ami José Carlos Mendes Brandão, poète et romancier brésilien, a écrit cet ascétique haïku :

O arco-íris
atrás das grades
chora sobre a cidade.

Je vous en propose en français cinq versions:


Version rangée [#1]

L’arc-en-ciel
derrière les grilles
pleure sur la ville.


Version assortie [#2]

L’arc-en-ciel
au-delà des grilles
pleure sur la ville.


Version surréaliste [#3]

L’arc-en-ciel
derrière les barreaux
pleure sur mon chapeau.


Version surréaliste franco-brésilienne [#4]

L’arc-en-ciel
derrière les barreaux
pleure sur mon chapéu.


Version surréaliste stricto sensu [#5]

L’arc-en-larmes.

20 de fevereiro de 2009

La bêtise démultipliée

Devant la rudesse de la boutade:

L'Europe est une bêtise pleine de musées.

(Nelson Rodrigues [1912-1980], écrivain brésilien),

Monsieur Naje a fait remarquer le paradoxe:

C'est davantage la bêtise sous-développée qui se nourrit des musées de l'Europe.

(P. C. Naje [1917-1992]).

16 de fevereiro de 2009

Lustrar a palavra

O hoje esguio e depilado e sempre arredio e maledicente G. – que depois se revelaria M. e que, um pouco mais adiante, iria se revelar um tolo – disse-me não gostar de falar certas palavras por considerá-las excessivamente gays: – Evito até pronunciá-las, você não percebe como elas deformam o rosto? E seu rosto justamente se iluminava de uma careta de lascívia e dor que deixava, a despeito do recato histericamente alardeado, entrever um prazer compulsivo em simplesmente pensar nas palavras proibidas.

Minha primeira reação, depois de tossir para ganhar tempo e de cruzar um pouco mais os braços para conter meu interesse crescente por esse sintomão que se apresentava diante de mim como uma dessas plantas carnívoras de desenho animado, cuja exuberância dentada de más intenções e de lábios e recônditos escandalosamente vermelhos faz pender de cada pestilo contorcido uma gosma delatora, foi: – Sério?

Seríssimo! – sibilou G. visivelmente indisposto com a minha resposta – Eu não me atreveria, por exemplo, dizer que estou CHO-CA-DO...

Na hora, pego de surpresa, convulsionei o esgar daqueles que imploram de joelhos que se mude de assunto e argumentei que não via nada demais na palavra “chocado”, que essa palavra em si não me parecia especificamente gay, blá-blá-blá.

Pobre G.! Nessa ocasião P. C. Naje nunca me pareceu tão preciso: “Um vício: cera tão eficaz quanto supérflua que torna as palavras sempre lustrosas independentemente das mãos que as lustram”.

10 de fevereiro de 2009

Ensaios para montar [2]

Ainda a série "Ensaios para montar"...



A DESCRIÇÃO DE UM RAPAZ



Se, por encomenda, me fosse o caso de descrever
um rapaz, pergunto-me por onde começaria

um rapaz gaiato e atemporal; no material, poroso mas compacto
e cromado; na estrutura, articulado, portátil, porém estável

seria o rapaz que teria minha predileção analítica
(Vã espera: na encomenda a fortuna não é compulsória

Sequer obrigatória). Algo que é preciso aceitar
quando se exerce a especialidade, essa arte de registrar:

arte de descrever rapazes, de encontrar a frase
que desentranhará o fundo da forma, a substância.

Um desafio seria a variedade de rapaz
já que ninguém por princípio ignora

que a espécie dos rapazes é grande em número
nos cinco continentes e extramuros.

E como seria lastimável prescindir
da observação direta e indireta
da coleta explícita e sorrateira e
do contato não assistido e de
explorações ulteriores com e sem sonda!

Sempre o dilema: por onde começar?
Por sua ossatura ou por sua ergonomia?

Por seu revestimento ou por sua aderência?
Começar logo pelo estofo, medindo-lhe a luminescência,

talvez fosse o mais acertado, ainda que mais comercial
(Idéia que desagrada o outsider, o misantropo, o animal,

O debochado, o desregrado, o indiferente que eu quis ser)
Mas ao menos garantiria um prólogo difícil de esquecer.



J. C. P.
janeiro de 2009

6 de fevereiro de 2009

Alegria cifrada

Mais um poema do meu baú de Kaváfis... Que preguiça de digitar o original francês!



A GRANDE CONTA

Se eu sou feliz ou infeliz, eis uma pergunta que não me faço.
A única coisa em que penso sempre com alegria –
é que na grande conta (a conta deles, a que detesto)
com todas as suas cifras, eu não figuro,
como uma unidade entre outras. No total,
eu não fui contado. E essa alegria me basta.


(fevereiro 1897)


KONSTANTINOS KAVÁFIS, via tradução francesa de Dominique Grandmont
Tradução de J. C. P.

5 de fevereiro de 2009

Le poète-chaman

Le poète brésilien Roberto Piva n’est pas un complet inconnu au monde francophone, mais j’ai tout de même voulu consacrer au poète-chaman une petite présentation.

Piva est né à São Paulo, le 25 septembre 1937. Poète polémique et longtemps marginalisé par la critique brésilienne, Piva est devenu connu à partir des années 60 en raison de son écriture inquiète et rebelle dans la ligne de la génération beat américaine.

Les poèmes que j’ai traduits ci-dessous condensent les grands thèmes de sa poésie : l’amour des garçons, la catharsis poétique, l’éloge du corps, la fascination du primitif, en un mot, la vocation chamanique de la poésie.

Dans les propres paroles de Piva : « L’écologie du langage: les poètes brésiliens doivent laisser d’être des dégonflés pour être des sorciers » (Poesia Sempre, n. 8, juin 1997, Fundação Biblioteca Nacional (RJ), p. 355).

* * *

Piva en portugais : Obras Reunidas [Œuvres Réunies] (Trois tomes: 2005, 2006 et 2008), sous la direction de Alcir Pécora. Piva en français : Poèmes traduits par Michel Riaudel (Revue Europe, n. 919-920, 2005, p. 272, numéro spécial sur la littérature brésilienne).

* * *


la poésie voit plus loin
voilà l'esprit du feu
ma main
danse
sur le corps du garçon lunaire


a poesia vê melhor
eis o espírito do fogo
minha mão
dança
no corpo do garoto lunar


*

ton trou du cul hors de la loi
ta bite enragée
joie d'ange
dans les routes
du plaisir
langue des esprits indiens
champignon prophétisant
anarchie & délire
bouche dans mon pied
bouche dans mes couilles
poésie c'est folie
à l'excès du Jour
ouvrant la Nuit

(Plage de la Juréia, 1983)


teu cu fora da lei
teu pau enfurecido
alegria de anjo
nas estradas
do prazer
língua dos espíritos índios
cogumelo profetizando
anarquia & delírio
boca no meu pé
boca no meu saco
poesia é desatino
abrindo a Noite
ao excesso do Dia

(Praia da Juréia, 83)


de "Na parte de sombra de sua alma em vermelho" [Dans la partie d'ombre de son âme en rouge], Ciclones [Cyclones], São Paulo, 1997, p. 33-4.


***


VI.

garçon indien mon amour
pendant trois nuits l'incendie
a bouleversé le cœur des méduses
graines & racines
où les îles
élèvent
ses braises


VI.

garoto índio meu amor
por três noites o incêndio
bagunçou o coração das medusas
sementes & raízes
onde as ilhas
erguem
suas brasas


de "VII Cânticos xamânicos" [VII Chants chamaniques], Ciclones, São Paulo, 1997, p. 90.


***


Rimbaud
garçon-Panzer
cuisses d’or
de routard des étoiles
puer de l’alchimie

(Mairiporã, 1995)



Rimbaud
garoto-Panzer
coxas douradas
de mochileiro das estrelas
puer da alquimia

(Mairiporã, 95)


de « BR 116 » [Autoroute Nationale Brésilienne n. 116], Ciclones, São Paulo, 1997, p. 90.


Roberto Piva
Traduction de J. C. P.

4 de fevereiro de 2009

O berço da imagem

Nutrimo-nos da impermanência das idéias ... ou das coisas?


QUANDO TE VÊM...

Tenta guardá-las, poeta,
ainda que poucas se demorem.
As visões do teu desejo.
Verte-as, um pouco veladas, em tuas frases.
Tenta guardá-las, poeta,
quando te vêm à mente,
à noite ou no pleno fulgor do meio-dia.


QUAND ELLES SURGISSENT

Essaie de les retenir, poète,
même s'il y en a peu qui s'arrêtent.
Les visions de ton désir.
Glisse-les, à demi voilées, dans tes phrases.
Essaie de les retenir, poète,
quand elles surgissent dans ton cerveau,
la nuit ou dans le plein éclat de midi.


KONSTANTINOS KAVÁFIS, via tradução francesa de Dominique Grandmont
Tradução de J. C. P.

O número das almas

“[...] o mundo romano, mais do que o grego, vivia recorrendo a intérpretes sempre que os assuntos da administração assim exigiam. Sabemos que César mantinha com frequência tais intérpretes na Gália, e que por vezes os afastava quando tratava de assuntos muito secretos. Nada de toda essa experiência passou à ciência latina, apesar do que disse, de forma assombrosamente moderna, Ênio [240-170 a.C], em uma frase que encantou [Benjamin Lee] Whorf [1897-1941]. Ênio, poeta venerado pelos romanos, que ensinava grego e latim, que sabia o idioma osco, ao falar sobre tradução afirmava que, como sabia três línguas, “tinha três almas” (tria corda habere).

Em Historia de la lingüística desde los orígenes al siglo XX, de Georges Mounin (Gredos, Madrid, 1968, p. 103).

3 de fevereiro de 2009

Dalva, La Reine de la Voix

Les Français ont la Môme Piaf... Chez nous, la Voix, c’est Dalva de Oliveira [1917-1972]… Voici une traduction approximative d’une de ses plus belles chansons. Ne faites pas attention aux rimes !



ENFIN
(Marino Pinto - Jota Pereira)

Enfin, j'ai trouvé en toi
Ce que je cherchais
Enfin, j'ai donné à toi
Ce qui te manquait.

Nous sommes des âmes sœurs
Qui trainaient délaissées, sans amis,
Mais qui sont nées pour faire
Les mêmes chemins battus.

(On récite)
Enfin, j'ai trouvé en toi,
Ce que je cherchais
Enfin, j'ai donné à toi,
Ce qui te manquait.

(On chante)
Enfin, j'ai trouvé en toi,
Ce que je cherchais
Enfin, j'ai donné à toi,
Ce qui te manquait.

Nous sommes des âmes sœurs
Qui trainaient délaissées, sans amis,
Mais qui sont nées pour faire
Les mêmes chemins battus…



FINALMENTE
(Marino Pinto - Jota Pereira)

Finalmente, achei em você,
O que eu procurava,
Finalmente, eu dei a você,
O que lhe faltava.

Nós temos almas irmãs,
Que caminhavam, desamparadas,
Mas nasceram para seguir,
As mesmas estradas.

(Recitando)
Finalmente, achei em você,
O que eu procurava,
Finalmente, eu dei a você,
O que lhe faltava.

(Cantando)
Finalmente, achei em você,
O que eu procurava,
Finalmente, eu dei a você,
O que lhe faltava.

Nós temos almas irmãs,
Que caminhavam, desamparadas,
Mas nasceram para seguir,
As mesmas estradas....


De l’album « Dalva de Oliveira canta boleros » (Odeon, Brésil, 1959).

2 de fevereiro de 2009

Plásticas

De todas as metáforas doutas, aquela que toma a Obra por uma Pintura (ou a Alma por uma Tela) é a mais insossa que se pode imaginar...

MARCEL PROUST (apócrifo)

*

... até a invenção da metáfora do Mundo como um Livro.

ainda MARCEL PROUST (apócrifo)

*

O uso continuado deste produto pode provocar ansiedade, mania persecutória, esquizofrenia [ilegível], assim como diversas complicações [rótulo rasgado]...

ADVERTÊNCIA no rótulo de um solvente

*

Na primeira utilização, a pressão uniforme e o movimento regular e contínuo farão com que as cerdas hidratem-se e ganhem em flexibilidade e aderência.

COMO USAR um pincel de pelo de pônei

*

De vez em quando, olhe para a sua paleta e cuide para que ela não fique mais bela do que o quadro.

INTRODUÇÃO do curso prático de pintura