30 de janeiro de 2009

Sonnets Choisis de Glauco Mattoso

Há algum tempo venho traduzindo sonetos de Glauco Mattoso para o francês. Considerando o apreço que os franceses têm pela literatura erótica e satírica, é incrível (e uma lástima!) que Glauco não seja já amplamente conhecido na França.

Sempre me recrimino por não dar mais atenção a esse projeto que, além de necessário, é muito divertido. Até hoje não traduzi mais do que meia dúzia de sonetos, dos quais apenas dois dei por terminados – não sem antes submetê-los à leitura atenta do caríssimo Alfredo Fressia, poeta e tradutor uruguaio radicado no Brasil que manja tudo de poesia e de francês, além de conhecer muito bem a obra mattosiana.

Por falta de talento e paciência, renunciei à metrificação e à preservação do esquema de rimas original. Como se sabe, o soneto decassílabo é uma arte italiana que foi cultivada pela tradição literária portuguesa e brasileira (Camões, Bocage, Jorge de Lima, Bruno Tolentino, entre outros) e dificilmente encontraria um equivalente no soneto francês "moderno", que possui tradicionalmente doze sílabas. Concentrei-me nas imagens dos sonetos e, na medida do possível, procurei também recriar um pouco da melopéia dos originais brasileiros, que de tão cantantes, de tão bem escandidos, só faltam se autodeclamarem.

Eis abaixo os dois sonetos traduzidos, work in progress que Glauco já disponibilizou on-line juntamente com seus "sonetos completos" e que talvez integrem um dia meu Sonnets Choisis de Glauco Mattoso. Esses sonetos foram editados originalmente em Geléia de Rococó (Ciência do Acidente, 1999) e datam, como sua numeração indica, do começo da experiência de Glauco como sonetista, que hoje em dia já ultrapassou os três mil sonetos.



SONNET BRANLEUR [307]

Si "circle jerk" est bien "branlette en cercle",
il reste davantage démontré:
les jouets des garçons ne sont pas carrés,
c'est l'esprit des adultes qui est vierge !

En pensant aux tétons et à la chatte,
ils voient pourtant les copains tout à côté.
La libido des garçons est compliquée:
ils fourrent leur nez partout, ces camarades !

Ils n'ont pas encore de poils, mais tirer
savent-ils leurs bites en cachette,
en dévoilant les petits glands cerise-lustrés.

Se rappeler la glace et la sucette
c'est presque automatique. - L'un d'eux
flanche et suce la bande satisfaite !


SONETO PUNHETEIRO [307]

Se "circle jerk" é roda de punheta,
já fica desde logo demonstrado:
brinquedo de guri não é quadrado.
A mente dum adulto é que é careta.

Pensando nos peitinhos, na buceta,
mas vendo os coleguinhas lado a lado,
libido de menino é complicado:
bedelho mete em tudo, esse xereta!

Pentelho inda não tem, e já maneja
com toda a habilidade seu cacete,
expondo a cabecinha de cereja.

Lembrar do pirulito e do sorvete
é quase que automático. Fraqueja
um deles, e na turma faz boquete.


*


SONNET TRAVESTI [313]

L'appeler "transformiste" peu explique,
l'appeler "drag queen" ne précise point.
L'explication ne se trouve pas loin :
à la place du con on y trouve une bite.

Hormones, de la silicone, ça marque bien
la féminité de sa figure.
Peut-être soit-elle trop grosse sa pointure,
mais dans l'ensemble ça ne change rien.

Le soir le travesti risque sa peau,
il fait le trottoir, il racole à l'ombre
des voyous, des flics, des recrues sados.

Dans la froide solitude de l'aube
parfois le plaisir trouve écho:
Un cri. Un corps. Un tir. Un coup de lame.


SONETO TRAVESTI [313]

Chamar de "transformista" não explica.
Chamar de "drag queen" não fala exato.
A explicação se encontra ali no ato,
pois no lugar da cona está uma pica.

Hormônios, silicone, tudo indica
a feminilidade no seu trato.
Talvez algo maior seja o sapato,
mas no conjunto pouco modifica.

À noite pesa a barra do traveco
que faz a viração pela calçada
à cata dum bandido, um tira, um reco.

Na fria solidão da madrugada
às vezes o prazer vai ter seu eco:
Um grito. Um corpo. Um tiro. Uma facada.


Glauco Mattoso
Tradução de Jean Cristtus Portela

29 de janeiro de 2009

Não coisas, mas idéias que são coisas!

Quando Williams preconizou em poesia o método “Componha! (Não idéias, mas coisas)” – método consagrado pelos orientais e retomado antes de Williams por Pound e seu círculo – as coisas já dominavam com folga a paisagem da poesia dita moderna.

Com raras exceções, poucos foram os que tomaram real partido das idéias em poesia (Lautréamont, Ponge, Michaux?). Alguns dos que o fizeram escolheram o caminho fácil do engajamento sem ascese alguma.

Raro é aquele que se deleita ao perceber de soslaio o rendado canyon conceitual que se estende do penhasco das narrativas ao vale fundo das digressões, no qual a água ligeira se coalha de pedras a cada volteio e escorre a profusão de peixes que se projetam no laminado da manhã.

28 de janeiro de 2009

Lexicógrafo de ocasião

Após dar umas boas risadas lendo os verbetes do Dicionário inFormal da Língua Portuguesa ("O dicionário onde o português é definido por você!!!", diz o slogan), decidi arriscar uma modesta contribuição: submeti à análise do Dicionário inFormal o verbete "pintoso", que foi aprovado algumas poucas horas depois. Infelizmente, o dicionário não especifica os critérios de aprovação dos verbetes submetidos e nem diz se são, de fato, analisados por um especialista ou simplesmente "conferido" por um diletante ou geek qualquer.

Já aviso: colaborar nesse dicionário vicia...

27 de janeiro de 2009

Um ponto, não mais

Eu já suspeitava de algo nesse sentido... É o que os puristas chamam de inapelável fragilidade do homem.


UM PONTO, NÃO MAIS

O homem – seu ser essencial – é apenas um ponto. É esse único ponto que a morte engole. Ele deve tomar cuidado para não ser cercado.

Um dia, num sonho, fui rodeado por quatro cães e por um menininho maldoso, que os comandava.

A dor, a dificuldade incrível que eu tive em lhes atingir, disso sempre me lembrarei. Quanto esforço! Seguramente eu tocava seres, mas quem? De todo modo, meus adversários foram desfeitos a ponto de desaparecerem. Eu não me deixei enganar por sua aparência, acredite. Eles eram também apenas pontos, cinco pontos, mas muito fortes.

Mais uma coisa, é assim que começa a epilepsia. Os pontos começam então a andar sobre você e o eliminam. Eles sopram e você é invadido. Em quanto tempo se pode retardar uma primeira crise, é o que me pergunto.

Henri Michaux
Un point, c’est tout, de La nuit remue (Gallimard, 1967, p. 30)
Tradução de J. C. P.