14 de maio de 2007

Aporia da Voz

E. não suporta a voz de M., de quem tampouco sente completa aversão. Simplesmente ela não gosta de ouvir essa voz e não consegue conviver muito tempo com M., que, é claro, ignora esse "segredo".

Isso me faz pensar sempre no quanto a voz é importante no que chamamos filosófica, semiótica e vulgarmente “Presença”. E também no quanto o som é palpável, concreto: ele se manifesta por e em nós. Até aí nada demais: só exponho empiricamente o que já muitos ensaístas, poetas e cientistas constataram.

O que me preocupa, afinal, é a primazia do corpo na concepção do Som. E, mais importante, a primazia do Som sobre o corpo, em detrimento do pensamento, da Idéia. Um som pode estourar uma membrana, um copo, fazer doer um dente. Nesses casos, vê-se que é bem do corpo, da carne da nossa existência, de que se trata.

A cantora francesa Barbara teoriza a sua experiência (e que experiência e sensibilidade!) em uma passagem de sua autobiografia. Para ela, a voz é a sintonia fina da Presença humana e sua simétrica representação:

“A voz é um barômetro de uma extrema exatidão. Quantas vezes, diante de uma mudança até mesmo ínfima e quase imperceptível de seus timbres de voz, não pude notar o estado físico ou moral deste ou daquele amigo! Todos nós conhecemos timbres de voz que nos são insuportáveis, às vezes de forma até repulsiva. Conhecemos, do mesmo modo, o poder de certos agitadores ou oradores políticos de sinistra memória, de quem guardamos os sotaques arquivados em nossos tímpanos.” (Bárbara, Il était un piano noir… : mémoires interrompus, Fayard, 1998.)
*

Sim, a voz define o fulgor da Presença. Por outro lado, a inteligência humana é capaz de emular, reproduzir, qualquer voz: a voz não é somente arte do corpo, mas também da “memória”, que lhe fornece a matriz esquemática e abstrata, o padrão intensivo de sua extensão.

A partir dessa constatação, estamos prontos a ganhar o domínio de uma nova aporia: a Memória...

Um comentário:

Anônimo disse...

Interessante seu ensaio, sua "fenomenologia da voz" (ponho em aspas mas não li em lugar algum essa expressão.) E o cantor que se emociona ao ouvir a própria voz? Ou quando os olhos de quem canta ficam turvos quando se percebe modulado ou sintonizado com algum de seus sentimentos? Qual a distância entre quem canta e quem ouve ou sente (quando são a mesma pessoa?) Heehehe, abraços, J.