3 de dezembro de 2008

Novos e mornos tempos

Quando traduzi este poema, não fazia a menor idéia do sentido exato de seus versos. Traduzi a peça mais por farra, mais pela leveza da estrofe. Infelizmente, como acontece a todos nós, com o passar do tempo, especializei-me no tema da mornidão.

Como é bela a época em que ainda se supõe que o amor cortês sempre acaba em pura cortesia!



A Banheira

Como uma banheira revestida de branca porcelana,
Quando a água quente acaba ou fica morna,
Assim é o tardio abrandar de nosso amor cortês,
Ó minha muito elogiada mas-não-tão-satisfatória dama


Ezra Pound, em The Bath Tub (Selected Poems 1908-1969, Faber and Faber, p. 49)
Tradução de J. C. P.

3 de novembro de 2008

Zen-jotismo

A poesia de Michaux tem o retrogosto de um koan nada aveludado... É como o retorno de J., o outro J., que ressurgiu nos comentários do meu último post e me trouxe a lembrança de uma aventura zen, no mais preciso sentido do termo: uma aventura que não começou justamente porque não poderia terminar.



NOITE DE BODAS

Se, no dia de suas bodas, ao chegar em casa, você colocar sua mulher de molho, à noite, em um poço, ela ficará estupefata. Apesar de sempre ter tido uma vaga inquietação...

“Pronto, pronto, dirá a si mesma, então é isso, o casamento. Por isso é que se mantinha sua prática assim tão secreta. Eu me deixei levar por essa conversa”.

Todavia, por estar constrangida, ela nada dirá. Eis porque você poderá mergulhá-la no poço longamente e diversas vezes, sem causar escândalo algum na vizinhança.

Se ela não entendeu da primeira vez, tem poucas chances de compreender posteriormente e você terá muitas chances de continuar a fazê-lo sem grandes incidentes (salvo a bronquite), se é que isso lhe interessa.

Quanto a mim, que sinto mais a dor do corpo do outro do que a do meu próprio, tive que renunciar a essa prática rapidamente.


Henri Michaux, em La nuit remue (Gallimard, 1967, p. 32)
Tradução de J. C. P.

21 de outubro de 2008

Ensaios para montar [1]

Da novíssima série "Ensaios para montar"...


Ensaio sobre o homem livre e a novidade


I

Um homem livre é um ovo que pode vingar
um homem livre. E ele é sempre novo.

Homem livre, cornucópia da razão, radar
rizoma, mera vítima da fatalidade da escolha,

refém das ciências do amor, da amizade, do aprendizado e
da cortesia, do humor e da lascividade não totalmente obscenos;

Primor de autocomiseração e auto-indulgência, pendores difíceis,
por fim, de evitar, como um foco de dolo ou um polvo de resolvo.


II

O homem livre, em seu êxodo existencial, deduz
das dúvidas, das dívidas, dos divididos, dos dias:

E ser for chato, e se for desinteressante,
se for comum, vão e ruidoso (sobretudo ruidoso)?

– “Toda a insegurança do homem livre de hoje, ou quase,
está aí amontoada na estrofe anterior”, diz P. C. Naje.

Se assim for, então será caso de fazer tudo de novo,
Usar do furor poético, do contínuo semiossurto

para aparar e guardar as rebarbas das coisas. Sempre
juntando de tudo para fazer de novo, o homem livre!



J. C. P.
outubro de 2008

30 de julho de 2008

Agir, eu venho

Procurando algo sobre Henri Michaux na net, descobri um pequeno vídeo encanta(e perturba)dor, uma leitura do poema "Agir, je viens", que eu desconhecia.

Inevitável - e irresponsável - ensaiar uma tradução brasileira do texto:



AGIR, EU VENHO

Empurrando a porta que há em você, eu entrei
Agir, eu venho
Estou aqui
Apóio você
Você não está mais ao léu
Não está mais em dificuldade
Amarras desfeitas, suas dificuldades esmorecem
O pesadelo do qual acorda alucinada não existe mais
Eu a amparo
Você põe comigo
O pé no primeiro degrau da escada sem fim
Que a leva
Que a levanta
Que a realiza

Eu a apaziguo
Envolvo-a em camadas de paz
Faço bem à criança do seu sonho
Afluxo
Afluxo em louros sobre o círculo das imagens da amedrontada
Afluxo nas neves de sua palidez
Afluxo em sua lareira... e nela o fogo se reanima

AGIR, EU VENHO
Seus pensamentos impulsivos são apoiados
Seus pensamentos destrutivos são atenuados
Eu tenho minha força em seu corpo, insinuada
... e seu rosto, perdendo as rugas, é reavivado
Em você a doença não encontra mais caminho
A febre abandona-a

A paz das abóbadas
A paz dos campos novamente em flor
A paz entra em você

Em nome do mais alto número, eu a ajudo
Como em uma fumaça vulcânica
Vai-se todo o peso de seus ombros
As caras maldosas ao seu redor
Observadoras peçonhentas das misérias dos fracos
Não a vêem mais
Não existem mais

Tripulação de reforço
Em mistério e em linha profunda
Como uma esteira submarina
Como um canto grave
Eu venho
Esse canto a alcança
Esse canto a arrebata
Esse canto vibra de riachos
Esse canto se alimenta de um Niágara acalmado
Esse canto é todo seu

Nada mais de alicates
Nada mais de sombras negras
Nada mais de temores
De nada disso há mais vestígio
E com nada disso você tem mais a ver
Onde havia dor, há proteção
Onde havia dispersão, há constância
Onde havia infecção, há sangue novo
Onde havia ferrolhos, há o oceano aberto
O oceano promissor e a plenitude sua
Intocada, como um ovo de marfim.

Eu lavei o rosto do seu futuro.


*


AGIR, JE VIENS

Poussant la porte en toi, je suis entré
Agir, je viens
Je suis là
Je te soutiens
Tu n'es plus à l'abandon
Tu n'es plus en difficulté
Ficelles déliées, tes difficultés tombent
Le cauchemar d'où tu revins hagarde n'est plus
Je t'épaule
Tu poses avec moi
Le pied sur le premier degré de l'escalier sans fin
Qui te porte
Qui te monte
Qui t'accomplit

Je t'apaise
Je fais des nappes de paix en toi
Je fais du bien à l'enfant de ton rêve
Afflux
Afflux en palmes sur le cercle des images de l'apeurée
Afflux sur les neiges de sa pâleur
Afflux sur son âtre.... et le feu s'y ranime

AGIR, JE VIENS
Tes pensées d'élan sont soutenues
Tes pensées d'échec sont affaiblies
J'ai ma force dans ton corps, insinuée
...et ton visage, perdant ses rides, est rafraîchi
La maladie ne trouve plus son trajet en toi
La fièvre t'abandonne

La paix des voûtes
La paix des prairies refleurissantes
La paix rentre en toi

Au nom du nombre le plus élevé, je t'aide
Comme une fumerolle
S'envole tout le pesant de dessus tes épaules accablées
Les têtes méchantes d'autour de toi
Observatrices vipérines des misères des faibles
Ne te voient plus
Ne sont plus

Equipage de renfort
En mystère et en ligne profonde
Comme un sillage sous-marin
Comme un chant grave
Je viens
Ce chant te prend
Ce chant te soulève
Ce chant est animé de beaucoup de ruisseaux
Ce chant est nourri par un Niagara calmé
Ce chant est tout entier pour toi

Plus de tenailles
Plus d'ombres noires
Plus de craintes
Il n'y en a plus trace
Il n'y a plus à en avoir
Où était peine, est ouate
Où était éparpillement, est soudure
Où était infection, est sang nouveau
Où étaient les verrous est l'océan ouvert
L'océan porteur et la plénitude de toi
Intacte, comme un œuf d'ivoire.

J'ai lavé le visage de ton avenir.


Henri Michaux
Tradução de J. C. P.

1 de julho de 2008

Bela réplica

De uma carta de R. B. ao jovem H. G., que lhe acusara de assédio, sobretudo de ter supostamente pretendido trocar um prefácio por uma noite de amor:

“Eu não queria de forma alguma “minha língua em sua pele”, mas somente - ou de outro modo - "meus lábios em sua mão”. A nuança é literária (já que diz respeito à linguagem)? Mas eu vivo mesmo segundo a literatura, tento viver segundo as nuanças que me ensina a literatura.”

(Roland Barthes, em Fragments pour H., 1977, RB Œuvres Complètes, p. V-1006)

26 de maio de 2008

Versão integral

Na revista Língua Portuguesa que chegou às bancas este mês (Ano III, n. 31, maio de 2008), combinado à completa e instigante matéria de Edgard Murano "O mundo maravilhoso da palavra intraduzível", foi publicado um artigo meu sob o título "O mito do intraduzível". Abaixo, segue a versão original do texto, que é um pouco mais extensa e que deriva para outros assuntos no âmbito da tradução. Aproveito a ocasião para agradecer aqui tanto ao gentil E. M. quanto a seu editor, que se interessaram pela tese defendida no artigo a ponto de acreditarem que ela merecesse circular entre outros leitores.


* * *



TRADUZÍVEIS


O fetichismo da forma

Os partidários do intraduzível têm por deus, a língua, e por santos de predileção, as palavras – o conjunto estando perfeitamente orquestrado no céu das formas. A sensação e a percepção, a cognição e o pensamento – todos constituintes sutis e imateriais da linguagem – não têm muito espaço nessa visão “concreta” (e parcial) sobre a tradução.

Ora, todos sabemos que cada língua tem suas “palavras de toque”, seus cristais raros, que concentram a aventura humana como experienciada por uma determinada cultura. Para deleite dos fetichistas do léxico, muitas palavras “sem tradução” constituem uma única unidade lexical (ainda que muitas vezes sejam formadas por justaposição de dois ou mais vocábulos), cuja explicação-tradução (redobrado deleite!) toma uma ou duas linhas de texto. Em si, isso não tem nada de surpreendente: cada cultura possui seqüências comportamentais recorrentes (ações, cenas, sentimentos) que “forçam” a superfície material da língua para ganhar corpo, contornos, vocalização, uma forma estável de denominação.

Se, do ponto de vista da forma, somos conscientes do fato de que há palavras de difícil ou “impossível” tradução, para as quais não dispomos de vocábulos equivalentes tão significativos ou econômicos, do ponto de vista do conteúdo, sabemos muito bem que não há experiência humana expressa na língua que não possa ser explicitada, explicada, transmitida a outro humano.

Isso significa dizer que se a forma pode nos ser estranha, já que provém de um repertório de sensações (sons, cores, volumes, etc.) diferente do nosso, que sofreu coerções sociais e históricas também diferentes das que conhecemos, o conteúdo, por mais “estrangeiro” que seja, raramente nos é completamente desconhecido, desde que nos disponhamos a apreciar a experiência do outro (sua “forma de vida”) com, ao menos, cumplicidade.

Irônica e (talvez) previsivelmente, o fetichismo da forma é maior entre certos literatos, principalmente para aqueles que acreditam que a literatura é “literária” pela sua simples construção expressiva, formal. Embora seja difícil conceber o fenômeno literário (sobretudo o ocidental) sem o fetiche da forma, é impossível deixar de relativizar sua pertinência: se a forma é essencial – e custa caro, como dizia Valéry – é justamente porque ela controla o fluxo das nossas experiências e saberes, os conteúdos que nos são mais caros.


Tradução estratégica

A idéia de que haja um texto original, regido por uma inteligência autoral completamente consciente e controlada, que possa ser transposto fielmente ponto a ponto não acha muitos adeptos hoje em dia. O autor foi destronado de seu posto de exclusivo domínio sobre o próprio texto. O texto foi pluralizado e, de certa forma, relativizado. Não sendo palavra imutável ou sagrada, o texto “original” passou a ser considerado, no limite, uma tradução privilegiada, uma tradução “original”.

O mesmo acontece com a idéia de uma tradução que possa ser considerada mais “próxima” (uma tradução literal, “juramentada”, formal) ou mais “distante” (uma tradução literária, crítica, criativa) do texto “original”. Compreende-se que o tradutor deve fazer escolhas e que essas escolhas fazem a síntese da estratégia adotada e perseguida (ética e estética, individual e coletiva, circunstancial e histórica, etc.). Nessa perspectiva, a posição que uma tradução ocupa em relação a seu original não pode ser avaliada simplesmente pela “distância” (verdadeira métrica do gosto) que ela mantém do ponto de referência, mas pela “localidade” em que se constrói. Assim, o perto e o longe, o vertical e o horizontal (“essa tradução é superior...”, dizem), perdem terreno para uma cartografia tradutória estratégica: eu, tradutor, situo-me em relação a um ponto de referência, situo-me segundo minhas intenções e possibilidades; eu, leitor, situo-me igualmente em relação ao ponto de referência e a esse ponto outro, traduzido, transposto (transponto), em contraponto.


O intraduzível como mito

De uma forma geral, o mito do intraduzível, baseado em nossa sede de intriga e fabulação, desperta a curiosidade e não deixa de conter um traço romântico. Ele insinua um acréscimo de esforço, de abnegação, de desejo de superação: o tradutor combate, ele (se) debate com o “gênio da língua”, que ganha a proporção de altas montanhas intransponíveis, de abismos infinitamente verticais, em suma, imagens de pequenez (fraqueza) e vertigem (desorientação).

Segundo esse mito, os inimigos do tradutor são a “densidade” (a “opacidade”), a “riqueza”, a “raridade” (a “preciosidade”) da língua a ser traduzida, que parecem sempre maior do que a da língua para qual se traduzirá. A “língua-alvo” ou “língua de chegada” é sempre insuficiente, está sempre aquém, ela está em posição de deficiência, de falta. Essa lógica do menos e do mais, da potência e da impotência, não serve obviamente para pensar a diversidade de línguas e as diferenças lingüísticas e culturais que tal diversidade implica. Para aqueles que as vivem do interior ou que as apreciam do exterior com olhos zelosos, todas as línguas são preciosas. Já o lingüista ou semioticista da língua, na absoluta impossibilidade de avaliar a “beleza” ou a “racionalidade” de uma língua (“Como é belo o francês!”, “Só se pode filosofar em alemão!”), contenta-se em inventariar e classificar contrastivamente os tipos lingüísticos.

Geralmente, o mito do intraduzível arma um circo de horrores em que tudo tem seu valor assegurado pelo pitoresco: o “dialeto tribal”, os “resquícios de uma língua primitiva”, o “gênio da língua”. Tudo é pitoresco e anedótico: “Uma palavra para dizer tudo isso!”, “Quem não conhece essa expressão não entende essa cultura!”, “Não leio traduções!”, etc. A idéia de intraduzibilidade nutre-se da ignorância e do senso comum e promove preconceitos a julgamentos estéticos de valor obviamente duvidoso.

No cultivo do intraduzível, há um fascínio declarado pela impossibilidade de dizer. Fascínio e medo (o “formidável”, em uma abordagem etimológica): admiramos aqueles que podem dizer o que não podemos, duvidamos daqueles que nos ensinam a dizer o que não achávamos que podíamos dizer.


Bauru, 27 de março de 2008.
Jean Cristtus Portela

9 de maio de 2008

A polêmica sutil

Durante muito tempo fui um "cristão" no sentido kavafiano do termo... E existe outro?



ELE NADA ENTENDEU

Acerca de nossas convicções religiosas -
disse o fútil Júlio: "Eu li, entendi e
condenei". Ele pensa nos ter abatido
com seu "condenei", esse homenzinho ridículo.

Todavia tais artimanhas não funcionam conosco,
os cristãos. "Você leu, mas nada entendeu, pois se tivesse
entendido,
não teria condenado", imediatamente retrucamos.



RIEN COMPRIS

À propos de nos croyances religieuses –
Le futile Julien a dit « J’ai lu, j’ai compris,
j’ai condamné ». Il pense peut-être nous avoir anéantis
avec son « j’ai condamné », cet homme ridiculissime.

Mais de telles astuces ne prennent pas chez nous,
les Chrétiens. « Tu as lu, mais n’as rien compris ; car si tu avais
compris,
tu n’aurais pas condamné » avons-nous aussitôt rétorqué.


1928



KONSTANTINOS KAVÁFIS, via tradução francesa de Dominique Grandmont
Tradução de Jean Cristtus Portela

29 de abril de 2008

Ainda Michaux

Ainda Michaux - a tradução como "descanso na infelicidade":


DESCANSO NA INFELICIDADE

Infelicidade, minha grande lavradora,
Infelicidade, sente-se, descanse,
Descansemos um pouco, eu e você,
Descanse,
Você me encontra, me sonda, me demonstra.
Sou sua ruína.

Meu grande palco, meu porto, meu fogo.
Minha adega de ouro,
Meu futuro, minha verdadeira mãe, meu horizonte.
No seu calor, ao seu redor, em meu horror.
Eu me abandono.


REPOS DANS LE MALHEUR

Le Malheur, mon grand laboreur,
Le Malheur, assois-toi, repose-toi,
Reposons-nous un peu toi et moi,
Repose,
Tu me trouves, tu m’éprouves, tu me le prouves.
Je suis ta ruine.

Mon grand théâtre, mon havre, mon âtre,
Ma cave d'or,
Mon avenir, ma vraie mère, mon horizon.
Dans ta lumière, dans ton ampleur, dans mon horreur,
Je m'abandonne.


Henri Michaux, poema extraído de Plume (1963)
Tradução de Jean Cristtus Portela

23 de abril de 2008

Fronteira

Mais um pouco, mais um pouquinho de nada, este Michaux seria um Kaváfis. Segue uma tradução bem folgada do poema:


MINHA VIDA

Você vai embora, minha vida, sem mim.
Segue adiante.
E eu ainda hesito em dar um passo.
Você leva para longe a batalha.
Deserta-me assim.
Nunca a segui.
Suas ofertas não são claras.
Tão pouco quero e você nunca traz.
Por conta dessa falta, almejo tanto.
Tantas coisas, quase o infinito...
Por conta desse pouco que falta, que você nunca traz.



MA VIE

Tu t'en vas sans moi, ma vie.
Tu roules.
Et moi j'attends encore de faire un pas.
Tu portes ailleurs la bataille.
Tu me désertes ainsi.
Je ne t'ai jamais suivie.
Je ne vois pas clair dans tes offres.
Le petit peu que je veux, jamais tu ne l'apportes.
A cause de ce manque, j'aspire à tant.
A tant de choses, à presque l'infini...
A cause de ce peu qui manque, que jamais tu n'apportes.


Henri Michaux (1899-1984), poema extraído de La nuit remue (1935)

Tradução de Jean Cristtus Portela