24 de maio de 2007

Aporia da Voz II (Uma resposta)

Caro E., sua interrogação sobre o tema que tentei abordar com minha descrição “fenomenológica” (para manter suas aspas) da voz é totalmente legítima.

Podemos considerar essa questão segundo duas hipóteses ou atitudes fundamentais: 1) O CANTOR emite a voz; 2) O voz é emitida NO cantor. Na primeira hipótese, o cantor é senhor de sua produção, "consciente” que é da inteligência que a elabora e do aparelho físico que a realiza. Na segunda, o cantor é "somente" o lugar, o receptáculo, o continente da produção, que lhe é exterior (exterior de seu interior), alheia (alhures), e ele ignora ou prefere ignorar o que se passa NELE.

Lembro-me, agora, vagamente, de Bola de Nieve (“Yo soy la canción que canto”) ou, ainda, de Maria Bethânia (“Não sou eu, é a Voz, é Deus...”), que encarnam, respectivamente, os dois modelos que descrevi acima.

Seja oriunda a voz do interior ou do exterior, a questão que você formula permanece incômoda: como mensurar e classificar os sentimentos do cantor em relação a sua própria voz?

(Se pensarmos que a voz, antes de ser material, é um “sentimento”, somos forçados a admitir que a fruição do cantor de sua própria voz é “metassensível”, é um sentimento ao quadrado. O que leva a crer que o sentimento do cantor, na medida em que usa seu canto como um plano de linguagem no qual ele elabora uma outra linguagem, é bem diferente daquele do ouvinte. O cantor sente e canta e, quando se ouve, sente algo sobre aquilo que sentiu no que cantou: é isso que classifiquei precariamente como fruição “metassensível”. De uma certa maneira, o pensador mais exigente pode alegar que todo o sentimento é sentimento de sentimento (o problema do valor do valor). Bom, nesse caso, eu diria que o “metassentir” do cantor é mais intenso que aquele do ouvinte.)

*

É nesse momento que penso, por exemplo, na última Billie Holiday, que, ainda SENDO a voz, não era, entretanto, mais habitada por ela. Embora a qualidade material da voz não pudesse mais se manifestar em Lady Day, quando ela abria a boca, havia ALGO que se desprendia de seu ser. Eu diria que esse algo é a memória da VOZ, a sua existência abstrata, esquemática. Não é à toa que, ao escutar Billie Holiday já decadente retomando “The end of a love affair” inúmeras vezes antes de atingir insatisfatoriamente a altura pretendida, não sabemos por qual voz decidir: a sensível ou a inteligível.


*

O cantor que houve a própria voz como se fosse de outro cantor encontra um correlato em Pessoa:

Brincava a criança
Com um carro de bois.
Sentiu-se brincado
E disse, eu sou dois !

Há um brincar
E há outro a saber,
Um vê-me a brincar
E outro vê-me a ver.

Acho que nenhum cantor está livre de ser dois, seja qual for a concepção que tenha de sua arte. O que me parece certo, é que, quando o artista SE emociona, ele o faz precisamente porque – consciente em menor ou maior grau de sua duplicidade perigosamente ambígua (o corpo e a voz, a voz DE e a voz NO etc) – ele se percebe UM.

Mas é claro que tudo o que eu disse não passa de especulação...

Grande abraço,

J.

Um comentário:

Anônimo disse...

Jean! Foi um grande prazer passar por aqui,
diga-se não foi de passagem...
Como adoro "especulações"
encontrei aqui muito do que gosto, retornarei.

abço. >>;<<