30 de julho de 2009

Da série "Ensaios para montar" [6]

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O JARRO



Este jarro despreza o olhar
Refratado em sua base circular
Mal traçada de um côncavo granulado.
Um jarro em que poucos derramaram a curva límpida
Da água, cujo esmalte gasto como um véu roto
No contorno do bocal – o gargalo levemente disforme –
Denuncia o triunfo do barro.

Poucas nuanças de tabaco e terracota costeiam
O longo do jarro e se coalham no seu bojo.
A saturação da cor dá a medida do seu peso,
Como a imperfeição da forma lhe confere leveza.

Um menino o deixa cair por falta de modos.
A senhora refresca o rosto com a água dele vertida
Enquanto a alça se rompe no ponto de equilíbrio.
Um monge fere ainda mais sua borda
Fazendo trovejar seu cajado.

Ao observador não resta mais do que a especulação
Que junta seus cacos, antes de um esgar premonitório
Que reconstitui o jarro aberto, couro lustroso esticado
Como uma tapeçaria em que quase se pode ler –
Lascas finas de barro e chão, algumas mais espessas,
E arredondadas e pontiagudas – uma inscrição esgarçada
Que se ramifica em fiapos.

Este jarro despreza o olhar
E, mais que fazer jorrar a água,
Ele parece ter sido esculpido com água jorrada
De modo que neste jarro qualquer derramamento
Se faz segundo a economia estrita do desperdício.

J. C. P.
julho de 2009

20 de julho de 2009

Inédito de Tal a Fuga




JOGADOR, ESTETA


Só mais uma no maço
nesta mesa de sargaços
detentora de descartes
arbitrários, nada fáceis

Este ouropel é mais do que eu poderia supor
Fosse um bumerangue sob custódia, um ioiô
seria eternamente descartado e recobrado
carta sensível ao meu dom

Baixa a tiragem desse naipe
O parceiro exige o bate de um leque
legendário, tarefa do renitente
ás de ouros, um pingente.


J. C. P.

1 de julho de 2009

Os analectos de Jean-Lúcio [2]

O Mestre perguntava sempre sem muito ânimo, com a falta de ênfase que lhe era tão impossível quanto própria: de que são feitos os desertores?

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Pin amava a língua dos nobres, mas a exercitava sem domínio ou paixão. Mêncio denunciava o contrassenso em alta voz: “alguém que pensa ser traído pelo dialeto da sua terra natal jamais forjará um estilo”.

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“Um homem de princípios nada pode nos dizer sobre a dignidade”, bradava com frequência Kon. No que o Mestre se limitava a retorquir: “o velho Kon não se engana quando busca a dignidade e nada é menos digno do que isso”.

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Sabendo que naquela tarde encontraria o amado discípulo, Jean-Lúcio estirou o pano cinza e espesso no qual fazia tombar as varetas escuras do Grande Livro e – antes de soltá-las em desordem no tecido impecavelmente alinhado – dirigiu-se a seu círculo em versos lacônicos:

A túnica com que cingiram
Meus ombros é a lição pura
Da compaixão súbita –
Cálida veste cujo perfume
Conduz-me ao Caminho!

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O jovem Lao, escrivão real que praticava a arte da caligrafia e da gramática como poucos, procurou o Mestre para saber o que seria de sua posição quando a Casa de Tzi deixasse de ser a única escola a oferecer homens doutos ao imperador. Disse Jean-Lúcio: “a arte da escrita nada tem a ver com os sábios métodos de Tzi ou com o Grande Imperador e sobreviverá a ambos”.

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