26 de maio de 2008

Versão integral

Na revista Língua Portuguesa que chegou às bancas este mês (Ano III, n. 31, maio de 2008), combinado à completa e instigante matéria de Edgard Murano "O mundo maravilhoso da palavra intraduzível", foi publicado um artigo meu sob o título "O mito do intraduzível". Abaixo, segue a versão original do texto, que é um pouco mais extensa e que deriva para outros assuntos no âmbito da tradução. Aproveito a ocasião para agradecer aqui tanto ao gentil E. M. quanto a seu editor, que se interessaram pela tese defendida no artigo a ponto de acreditarem que ela merecesse circular entre outros leitores.


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TRADUZÍVEIS


O fetichismo da forma

Os partidários do intraduzível têm por deus, a língua, e por santos de predileção, as palavras – o conjunto estando perfeitamente orquestrado no céu das formas. A sensação e a percepção, a cognição e o pensamento – todos constituintes sutis e imateriais da linguagem – não têm muito espaço nessa visão “concreta” (e parcial) sobre a tradução.

Ora, todos sabemos que cada língua tem suas “palavras de toque”, seus cristais raros, que concentram a aventura humana como experienciada por uma determinada cultura. Para deleite dos fetichistas do léxico, muitas palavras “sem tradução” constituem uma única unidade lexical (ainda que muitas vezes sejam formadas por justaposição de dois ou mais vocábulos), cuja explicação-tradução (redobrado deleite!) toma uma ou duas linhas de texto. Em si, isso não tem nada de surpreendente: cada cultura possui seqüências comportamentais recorrentes (ações, cenas, sentimentos) que “forçam” a superfície material da língua para ganhar corpo, contornos, vocalização, uma forma estável de denominação.

Se, do ponto de vista da forma, somos conscientes do fato de que há palavras de difícil ou “impossível” tradução, para as quais não dispomos de vocábulos equivalentes tão significativos ou econômicos, do ponto de vista do conteúdo, sabemos muito bem que não há experiência humana expressa na língua que não possa ser explicitada, explicada, transmitida a outro humano.

Isso significa dizer que se a forma pode nos ser estranha, já que provém de um repertório de sensações (sons, cores, volumes, etc.) diferente do nosso, que sofreu coerções sociais e históricas também diferentes das que conhecemos, o conteúdo, por mais “estrangeiro” que seja, raramente nos é completamente desconhecido, desde que nos disponhamos a apreciar a experiência do outro (sua “forma de vida”) com, ao menos, cumplicidade.

Irônica e (talvez) previsivelmente, o fetichismo da forma é maior entre certos literatos, principalmente para aqueles que acreditam que a literatura é “literária” pela sua simples construção expressiva, formal. Embora seja difícil conceber o fenômeno literário (sobretudo o ocidental) sem o fetiche da forma, é impossível deixar de relativizar sua pertinência: se a forma é essencial – e custa caro, como dizia Valéry – é justamente porque ela controla o fluxo das nossas experiências e saberes, os conteúdos que nos são mais caros.


Tradução estratégica

A idéia de que haja um texto original, regido por uma inteligência autoral completamente consciente e controlada, que possa ser transposto fielmente ponto a ponto não acha muitos adeptos hoje em dia. O autor foi destronado de seu posto de exclusivo domínio sobre o próprio texto. O texto foi pluralizado e, de certa forma, relativizado. Não sendo palavra imutável ou sagrada, o texto “original” passou a ser considerado, no limite, uma tradução privilegiada, uma tradução “original”.

O mesmo acontece com a idéia de uma tradução que possa ser considerada mais “próxima” (uma tradução literal, “juramentada”, formal) ou mais “distante” (uma tradução literária, crítica, criativa) do texto “original”. Compreende-se que o tradutor deve fazer escolhas e que essas escolhas fazem a síntese da estratégia adotada e perseguida (ética e estética, individual e coletiva, circunstancial e histórica, etc.). Nessa perspectiva, a posição que uma tradução ocupa em relação a seu original não pode ser avaliada simplesmente pela “distância” (verdadeira métrica do gosto) que ela mantém do ponto de referência, mas pela “localidade” em que se constrói. Assim, o perto e o longe, o vertical e o horizontal (“essa tradução é superior...”, dizem), perdem terreno para uma cartografia tradutória estratégica: eu, tradutor, situo-me em relação a um ponto de referência, situo-me segundo minhas intenções e possibilidades; eu, leitor, situo-me igualmente em relação ao ponto de referência e a esse ponto outro, traduzido, transposto (transponto), em contraponto.


O intraduzível como mito

De uma forma geral, o mito do intraduzível, baseado em nossa sede de intriga e fabulação, desperta a curiosidade e não deixa de conter um traço romântico. Ele insinua um acréscimo de esforço, de abnegação, de desejo de superação: o tradutor combate, ele (se) debate com o “gênio da língua”, que ganha a proporção de altas montanhas intransponíveis, de abismos infinitamente verticais, em suma, imagens de pequenez (fraqueza) e vertigem (desorientação).

Segundo esse mito, os inimigos do tradutor são a “densidade” (a “opacidade”), a “riqueza”, a “raridade” (a “preciosidade”) da língua a ser traduzida, que parecem sempre maior do que a da língua para qual se traduzirá. A “língua-alvo” ou “língua de chegada” é sempre insuficiente, está sempre aquém, ela está em posição de deficiência, de falta. Essa lógica do menos e do mais, da potência e da impotência, não serve obviamente para pensar a diversidade de línguas e as diferenças lingüísticas e culturais que tal diversidade implica. Para aqueles que as vivem do interior ou que as apreciam do exterior com olhos zelosos, todas as línguas são preciosas. Já o lingüista ou semioticista da língua, na absoluta impossibilidade de avaliar a “beleza” ou a “racionalidade” de uma língua (“Como é belo o francês!”, “Só se pode filosofar em alemão!”), contenta-se em inventariar e classificar contrastivamente os tipos lingüísticos.

Geralmente, o mito do intraduzível arma um circo de horrores em que tudo tem seu valor assegurado pelo pitoresco: o “dialeto tribal”, os “resquícios de uma língua primitiva”, o “gênio da língua”. Tudo é pitoresco e anedótico: “Uma palavra para dizer tudo isso!”, “Quem não conhece essa expressão não entende essa cultura!”, “Não leio traduções!”, etc. A idéia de intraduzibilidade nutre-se da ignorância e do senso comum e promove preconceitos a julgamentos estéticos de valor obviamente duvidoso.

No cultivo do intraduzível, há um fascínio declarado pela impossibilidade de dizer. Fascínio e medo (o “formidável”, em uma abordagem etimológica): admiramos aqueles que podem dizer o que não podemos, duvidamos daqueles que nos ensinam a dizer o que não achávamos que podíamos dizer.


Bauru, 27 de março de 2008.
Jean Cristtus Portela

3 comentários:

Anônimo disse...

parabéns, jean!
a denise tb gostou muito do texto.
abrações

Anônimo disse...

saudades de você.
em "saudade", o intraduzível luso-brasileiro, apropriado por nós. A apropriação do sentido, ilusão nossa. Que saudade de nossas ilusões conjuntas!
meu beijo, meu até logo...

Adrianna Coelho disse...

gostei muito desse texto, jean...

vou ficar atenta aos seus posts :)

abraços!