3 de novembro de 2008

Zen-jotismo

A poesia de Michaux tem o retrogosto de um koan nada aveludado... É como o retorno de J., o outro J., que ressurgiu nos comentários do meu último post e me trouxe a lembrança de uma aventura zen, no mais preciso sentido do termo: uma aventura que não começou justamente porque não poderia terminar.



NOITE DE BODAS

Se, no dia de suas bodas, ao chegar em casa, você colocar sua mulher de molho, à noite, em um poço, ela ficará estupefata. Apesar de sempre ter tido uma vaga inquietação...

“Pronto, pronto, dirá a si mesma, então é isso, o casamento. Por isso é que se mantinha sua prática assim tão secreta. Eu me deixei levar por essa conversa”.

Todavia, por estar constrangida, ela nada dirá. Eis porque você poderá mergulhá-la no poço longamente e diversas vezes, sem causar escândalo algum na vizinhança.

Se ela não entendeu da primeira vez, tem poucas chances de compreender posteriormente e você terá muitas chances de continuar a fazê-lo sem grandes incidentes (salvo a bronquite), se é que isso lhe interessa.

Quanto a mim, que sinto mais a dor do corpo do outro do que a do meu próprio, tive que renunciar a essa prática rapidamente.


Henri Michaux, em La nuit remue (Gallimard, 1967, p. 32)
Tradução de J. C. P.

Um comentário:

Anônimo disse...

Certa vez, um boiadeiro no terreiro de Umbanda, pé na terra e sentidos no Universo, me disse que eu era especial e eu acreditei... mas, especial em quê? e pra quê? e pra quem?
Quando as cartas do Koan trazem um sabor dolce-amaro e a realidade cotidiana parece extremamente diabética e independente de mim existe direção diferente deste tom da poesia de Michaux?

J., "o outro J."

PS:...Porque 5 linhas de J.C.P me são muito mais saborosas que dúzias e dúzias de traduções.