23 de novembro de 2007

O virtuosísmo de Desproges




Ó vertigem do roupeiro escancarado no alinhamento militar dos trapos incertos de aromas naftalínicos...


Ó vertigem do roupeiro escancarado no alinhamento militar dos trapos incertos de aromas naftalínicos...
Odeio cabides.
O cabide agride o homem. E por pura crueldade.
O cabide é o único objeto que agride o homem por pura crueldade.
O cabide é o lobo do homem.
Há objetos que agridem o homem pois essa é sua razão de ser.
Tomemos a porta... como exemplo! (Mas não a sua direção! Não vão embora! É só um jeito de dizer.)
Tomemos a porta como exemplo. Uma porta. Às vezes o homem toma uma portada na cara.
Ok.
Mas não há nisso a menor manifestação de ódio da parte da porta em relação ao homem.
O homem toma uma portada na cara porque é preciso que uma porta esteja aberta ou seja azul.
O cabide é naturalmente maldoso.
Pessoalmente, a idéia de ter que enfrentá-lo me é detestável.
Às vezes, no entanto, o confronto homem-cabide é inevitável. Algumas vezes, geralmente quando faz frio, a vontade de usar uma calça se torna irresistível.
O homem toma fôlego e também toma as duas portas do armário com as mãos.
Ele está sozinho. Nu. Ele é grande.
Sua postura é digna, diante do combate que sabe agora inevitável.
Seu peito é altivo. Suas pernas, ligeiramente arqueadas.
Seus pés nus, arco fincado ao solo.
Como um bombeiro diante do fogo, ele é belo em seu medo.
As portas do armário se abrem num só movimento. Os cabides estão lá, enroscados em seu puleiro na penumbra hostil.
Como uma fileira de vampiros atarracados no galho morto de um carvalho negro à espera silenciosa do potro desgarrado de flanco tenro no qual eles colarão seus focinhos imundos para drenar seu sangue claro por meio de lentas sucções gargarejadas e viscosas, até que a morte ache lugar.
No entanto, a atitude do homem não é ameaçadora. Simplesmente, ele quer sua calça.
A cinza, com pregas na frente e uma dobrinha embaixo.
O olho atento do homem localizou a calça cinza.
Ela é prisioneira do terceiro cabide da esquerda para direita.
É um cabide particularmente perigoso. Dissimulado. Ah. Ele não brinca em serviço.
Em madeira rosada, os ombros arcados, ele daria é pena.
Mas olhem bem seu gancho.
É uma mão de ferro.
Ela não largará sua presa.
O homem fica duro. Mais ainda seus músculos!
Avança um passinho macio de nada, para não despertar a atenção do inimigo.
É o momento decisivo.
Da eficácia do assalto que vai se seguir dependerá o resultado do combate. Com uma agilidade surpreendente para seu tamanho, o homem salta pra frente. Sua mão esquerda, rápida como um raio, afasta o cabide pendurado à esquerda do cabide rosa, enquanto sua mão direita se fecha impiedosamente sobre este último.
A reação do cabide é fulminante.
Ao invés de intensificar a pressão sobre a barra metálica, ele daí escapa bruscamente, arrastando em sua queda a calça, aquela cinza, com pregas na frente e dobrinha embaixo, a mesma que o homem quer naquela manhã porque.. porque sim.
No chão, o cabide rosa está ferido.
Nada é mais perigoso do que um cabide ferido.
Em seu inesquecível Vou cuspir em seus cabides, Ernest Hemingway não evita por fim tocar no assunto?
Um silêncio que consideraríamos longo, não?
O homem, nesse momento, está de joelhos no armário.
De sua garganta possante sobe um longo grito de guerra de homem dos roupeiros.
“Bagunça filha da puta, porra de cabide idiota do caralho!”
O cabide rosa sentiu a aflição do homem.
E vai sacrificá-lo.
Ele se enrosca em um outro cabide caído que se enrosca por sua vez na alça de uma mala.
Tudo está escuro.
À noite, todas as calças são pardas.
O homem, vencido, não oferece a menor resistência.
O nariz nas pantufas, soluça, na posição do fiel de Alá, a metade superior de seu corpo nu prisioneira do armário, a outra, oferecida ao olhar da emprega espanhola.
Ele sofre.
Algumas gotas de suor orvalham suas pálpebras.
Ele é pura humilhação, desespero e desgosto. Bolas de chumbo pendem de seu traseiro. Está com sede, frio, nem ódio mais tem.
Dê a ele ainda assim uma cueca”, meu pai diz.*
(Desce o pano)


Pierre Desproges (1939-1988)
Extraído de Textes de scène, Seuil, 1988, p. 76-80.

Tradução de Jean Cristtus Portela



* N.T.: Paródia do verso final de "Après la bataille", poema de Victor Hugo ( La Légende des siècles, XLIX, IV).

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