15 de junho de 2017

E OUTRO

DEFINA “SER SEU”


Se pudesse me ver como me sinto,
além de toda resistência modal,
não atribuiria à egotrip o que bradei
por umas duas vezes, uma delas por escrito,
sobre “ser meu”.

“Ser meu” não é um estado honorífico da matéria,
nem forja em metal nem traço de arroubo mítico.
“Ser meu” é um caule de capim coroado de penugens róseas
e colhido num gesto negligente entre sol e sombra – mais sol.

“Ser meu” é óbvio correlato de “ser seu”, sem sono, sem obrigações,
sem data de nascimento, prazo de validade ou carência.

“Ser meu” é o seu vulto repousado sob pouca luz
como modelo a ser capturado,
à minha espera, naquele instante, onde eu o procuro.
“Ser meu” é o olhar pacificado, sem sanção além do afeto duramente concedido,
e do franzir dos olhos e do morder dos lábios no momento
em que você e todos nós somos solitários.


Jean Cristtus Portela


Junho de 2017.

24 de abril de 2017

Um avulso de volta

DESFAÇA, DESPRENDA, DESQUEIRA

para M. B.


Desfaça, desprenda, desqueira,
mesmo que isso não o ponha a salvo
dos enganos esmerados
sem linha de alvo ou de obstáculo.

Estire sua ideia até nublar o ângulo –
tão mais agudo, tão mais obtuso –
na pulsante aspereza dos disfarces
que não são, por fim, armas de logro,
antes hesitações de pêndulo.

Não são lesa-você nem lesa-gentes,
são estojos e forros
do mobiliário dos náufragos,
dos desconfiados,
dos contidos por força desconhecida
que experimentam um excedente de expectativa.


Jean Cristtus Portela

Abril de 2017

14 de junho de 2013

Um avulso de Tal a fuga (2003-2006)



LINHAS IMPIEDOSAS REGERAM

Linhas impiedosas regeram sua
Penúltima mensagem: "Deixe-me, homem de
Afeição recessiva, altruísta oportunista
Adeus, amigo, nada restou daquele afeto límpido".

O que atiça minha máquina de juras
E meu detector de degredos.

Nem deliberada ausência ou
Presença filtrada borrará seu desenho
Nem biombos espessos reterão seu corpo -
Nem a linha mais cruel causa-me incômodo.

Ah, meu predador estrutural,
Fantasma predestinado, sempre recorde:
Nunca ninguém é tanto algo.

J. C. P

1 de junho de 2013

Da série "Poemas do gabinete" [2]



FÔLEGO PARA O MOVIMENTO

Antes do início da banca de ontem,
tive que buscar meus óculos no carro.
Cena trivial de que a ruína
Sempre foi a ausência
do natural, do sensual,
fôlego para o movimento.

Fôlego para o movimento –
medida de usura
dos corpos. É o que transmuda
a caixa de ossos na arrogância
dos gestos mais eróticos: tônus, tórax,
suor, transporte, torpor.


Araraquara, maio de 2013.

J. C. P.

29 de maio de 2013

Da série "Poemas do gabinete" [1]




FAUNO DE ANFITEATRO

Física, química, lógica, botânica.
É incerta sua especialidade,
insinuada pelo queixo tímido
e pelo lábio mordido
sob o nariz vago.
Bochechas compactas
cobertas da pele lisa e pálida
que sobe também pelas longas pernas
e se espalha pelo quadril que quase
não segura sua melhor calça.

Ombros de remador que jamais remaram,
as mãos descansam sobre o colo
e revolvem o bloco em que lança
ou finge lançar suas sonolentas impressões.

Falsamente indefeso ignora
o rébus que se desenha em sua nuca,
no contorno do seu talhe crescido
de pajem responsável pelos banhos.

Abandona-se na poltrona entediado,
cercado pelos pares mais caros,
em insuspeito sacrifício
a um fauno de anfiteatro.


São Paulo, novembro de 2009.

J. C. P.

6 de novembro de 2010

Da série "Ensaios para montar" [7]

Primeira versão daquele que promete ser o único "publicável" de 2010...
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A CAIXA

Um maço de cartas cingido
Frouxamente por uma fita,
Pesado das moedas que recolhemos
Na primeira viagem.
E marcadores de páginas,
De páginas arrancadas sem hesitar
Dos melhores anos, dos piores álbuns;
E convites de vernissages e casamentos
Aos quais não fomos e silenciamos
Em omissão prazerosa, pois cúmplice,
Que nos possuía na época longínqua
Em que a resistência ao alarde
Era todo o afeto que nos unia.


J. C. P.
Outubro de 2010

15 de janeiro de 2010

Top 10 das imp(r)udências

Gide blefando em entrevista a Jean Amrouche: "Tenho horror ao escândalo, ao escândalo pelo escândalo... Sempre que pude, procurei evitá-lo, o que só não fiz quando foi absolutamente inevitável".

Sei, sei...

Pensei nisso ao reler esta canção de circunstância, que se perde na minha galeria trash-platônica e que renderia, sem dúvida, uma boa posição num Top 10 de imp(r)udências.



PROGNATA


Ele se sabe mestre da desgraça e
Das frágeis formas de ocultá-la.
Difícil precisar como a presunção
Pueril dependura-se
Em seu queixo projetado.
Do crânio, a proeminente
Gaveta metálica destaca-se
Ofensiva em um bico suplicante.
Reclama para si uma agressividade
Inata de destino moído a patadas.

Experimento a improvável visão
De sua regata atirada em minha cara
(Quando ela jamais saiu de seu torso).

Prognata, pureza suspeita
Sua testa refrata. O véu amigável
Oculta as tatoos, minha cobiça escarificada.

O fauno que imagino ser
Tem entre os dentes sua cabeça que pende
Por uma orelha furada.
Ele sabe, afinal, que sou letal
Feito um coala, cínica pelúcia de Austrália:
Só, eu desfio, um colo é meu exílio.


fevereiro de 2005
J. C. P.

30 de julho de 2009

Da série "Ensaios para montar" [6]

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O JARRO



Este jarro despreza o olhar
Refratado em sua base circular
Mal traçada de um côncavo granulado.
Um jarro em que poucos derramaram a curva límpida
Da água, cujo esmalte gasto como um véu roto
No contorno do bocal – o gargalo levemente disforme –
Denuncia o triunfo do barro.

Poucas nuanças de tabaco e terracota costeiam
O longo do jarro e se coalham no seu bojo.
A saturação da cor dá a medida do seu peso,
Como a imperfeição da forma lhe confere leveza.

Um menino o deixa cair por falta de modos.
A senhora refresca o rosto com a água dele vertida
Enquanto a alça se rompe no ponto de equilíbrio.
Um monge fere ainda mais sua borda
Fazendo trovejar seu cajado.

Ao observador não resta mais do que a especulação
Que junta seus cacos, antes de um esgar premonitório
Que reconstitui o jarro aberto, couro lustroso esticado
Como uma tapeçaria em que quase se pode ler –
Lascas finas de barro e chão, algumas mais espessas,
E arredondadas e pontiagudas – uma inscrição esgarçada
Que se ramifica em fiapos.

Este jarro despreza o olhar
E, mais que fazer jorrar a água,
Ele parece ter sido esculpido com água jorrada
De modo que neste jarro qualquer derramamento
Se faz segundo a economia estrita do desperdício.

J. C. P.
julho de 2009

20 de julho de 2009

Inédito de Tal a Fuga




JOGADOR, ESTETA


Só mais uma no maço
nesta mesa de sargaços
detentora de descartes
arbitrários, nada fáceis

Este ouropel é mais do que eu poderia supor
Fosse um bumerangue sob custódia, um ioiô
seria eternamente descartado e recobrado
carta sensível ao meu dom

Baixa a tiragem desse naipe
O parceiro exige o bate de um leque
legendário, tarefa do renitente
ás de ouros, um pingente.


J. C. P.

1 de julho de 2009

Os analectos de Jean-Lúcio [2]

O Mestre perguntava sempre sem muito ânimo, com a falta de ênfase que lhe era tão impossível quanto própria: de que são feitos os desertores?

*

Pin amava a língua dos nobres, mas a exercitava sem domínio ou paixão. Mêncio denunciava o contrassenso em alta voz: “alguém que pensa ser traído pelo dialeto da sua terra natal jamais forjará um estilo”.

*

“Um homem de princípios nada pode nos dizer sobre a dignidade”, bradava com frequência Kon. No que o Mestre se limitava a retorquir: “o velho Kon não se engana quando busca a dignidade e nada é menos digno do que isso”.

*

Sabendo que naquela tarde encontraria o amado discípulo, Jean-Lúcio estirou o pano cinza e espesso no qual fazia tombar as varetas escuras do Grande Livro e – antes de soltá-las em desordem no tecido impecavelmente alinhado – dirigiu-se a seu círculo em versos lacônicos:

A túnica com que cingiram
Meus ombros é a lição pura
Da compaixão súbita –
Cálida veste cujo perfume
Conduz-me ao Caminho!

*

O jovem Lao, escrivão real que praticava a arte da caligrafia e da gramática como poucos, procurou o Mestre para saber o que seria de sua posição quando a Casa de Tzi deixasse de ser a única escola a oferecer homens doutos ao imperador. Disse Jean-Lúcio: “a arte da escrita nada tem a ver com os sábios métodos de Tzi ou com o Grande Imperador e sobreviverá a ambos”.

* * *